Na crise diplomática da Venezuela, o governo de Jair Bolsonaro tem demonstrado falta de coesão.
De um lado, o chanceler Ernesto Araújo, indicado por Olavo de Carvalho, adota um tom belicoso que contrasta com a tradição brasileira de não-intervenção em assuntos internos de outros países.
De outro, os militares, representados pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, preferem manter um discurso cauteloso e se posicionar de forma mais independente dos Estados Unidos.
Por enquanto, a cautela das Forças Armadas tem prevalecido.
O exercício da diplomacia
Em entrevista à GloboNews, depois de encerrada a reunião do Grupo de Lima no dia 25 de fevereiro, Araújo se complicou para apontar a diferença entre negociar com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, como tem feito o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas não com Maduro.
A falta de tato para dar uma resposta diplomática rendeu inúmeras reportagens que destacavam como o chanceler relativizou a ditadura na Coreia do Norte diante do problema vivido pela Venezuela.
Esse tipo de comportamento, somado às recorrentes declarações de cunho “ideológico”, levaram a revista norte-americana Jacobin, especializada em Relações Internacionais, a definir Araújo como “o pior diplomata do mundo”.
Mourão, por sua vez, já tinha respondido sem embaraço se tratar de situações distintas, pois a conversa dos Estados Unidos com a Coreia do Norte se dava em torno da questão nuclear.
A influência dos militares no Itamaraty
Mourão e Araújo estavam alinhados para defender publicamente a decisão do Grupo de Lima, que reúne 14 países da região, de rechaçar uma intervenção militar na Venezuela.
Sabe-se, porém, que nos bastidores tem havido divergência entre a ala militar do governo e o chanceler na avaliação sobre a condução das relações com o país vizinho.
A decisão de enviar ajuda humanitária para a Venezuela, por exemplo, foi abraçada com empenho pelo chanceler, enquanto os militares defendiam que o Brasil fosse mais cauteloso em ações na fronteira.
Especula-se que a influência dos militares no Itamaraty tenha se fortalecido depois de Araújo divulgar documento que suspendia a cooperação militar com o regime de Maduro sem consultar a área de inteligência no Brasil.
Operação frustrada
A oposição ao governo de Maduro viu frustrada a estratégia de forçar a entrada no país de doações de comida e medicamentos vindos dos Estados Unidos.
A passagem seria feita pelas fronteiras com o Brasil e com a Colômbia, países que reconhecem, assim como cerca de outros 50, Juan Guaidó, líder da Assembleia Legislativa venezuelana, como presidente interino daquele país.
Não conseguiram passar nem obtiveram a adesão de militares como esperavam.
A operação de entrega de mantimentos e remédios liderada pelos Estados Unidos, Brasil, Colômbia e Chile seria uma forma de constranger a gestão de Maduro, mas o mais importante era a expectativa de quebrar o apoio militar que sustenta o regime.
A controversa ajuda humanitária
A crise de desabastecimento e hiperinflação que atinge o país há pelo menos dois anos é grave, o que torna qualquer ajuda humanitária importante e urgente. No entanto, não é possível separar os interesses políticos em jogo.
Como bem explicou reportagem do Nexo, a ajuda humanitária internacional acontece num espaço entre a soberania do país que recebe ajuda e a responsabilidade internacional de proteger determinada população necessitada.
É para permear as disputas políticas que existem organizações internacionais como a Cruz Vermelha que atuam no diálogo e em negociações para viabilizar a ajuda com neutralidade política.
Neste caso, a Cruz Vermelha expressou publicamente contrariedade com a politização da operação na Venezuela e com o uso indevido de seu emblema nessas ações.
Sem uma solução negociada, o grupo que empreendeu a tentativa de levar mantimentos à Venezuela pode até ter conseguido arranhar ainda mais a imagem de Maduro perante o mundo com as cenas de caminhões queimados, pessoas feridas e a notícia de quatro mortes.
No entanto, as pessoas mais vulneráveis, que deveriam ser o foco da ação, acabaram por não receber ajuda. E exceto algumas deserções de militares nas fronteiras, o apoio das forças armadas ao governo de Maduro continua em pé.
Democracia abalada
A situação política da Venezuela é delicada. Há diversas evidências de Maduro infringe princípios básicos da democracia.
Ataques à imprensa, suspeitas de fraude nas eleições, desrespeito à separação e à independência dos poderes, perseguição política de opositores.
Por outro lado, a busca de intervenção militar, como manifesta Guaidó e respaldam políticos americanos, tampouco é a melhor saída e carrega consigo o perigoso elemento de interferência externa na soberania nacional.
A complexidade da situação exige uma postura responsável do governo brasileiro e capacidade de lidar com os interesses envolvidos para além dos bordões anti-chavistas.
Em janeiro, Mourão perguntou à revista Época após entrevista: “Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?”.
Ao que parece, o vice-presidente já tomou a responsabilidade para si.
Por Samantha Maia
Leia também

A crise dos Poderes e a campanha permanente do Presidente
Continue lendo...
A empreitada de Bolsonaro contra os povos indígenas
Continue lendo...
O Presidente e os “Paraíba”
Continue lendo...