A memória, para o ser humano, sempre foi um instrumento indispensável para desvendar uma realidade ignorada. Isso explica também a busca permanente, por parte das civilizações, ao acesso a fatos históricos através de comprovações materiais e testemunhos orais: conhecer nossa identidade e a de nossos ancestrais é uma obsessão que nos persegue, para melhor compreendermos nossa vida presente.
O conhecimento do que se passou frequentemente causa incômodo aos responsáveis por fatos repulsivos ou a seus descendentes que, frequentemente, buscam “apagar” ou “maquiar” acontecimentos nada louváveis.
Nos últimos anos o negacionismo em nosso país se tornou um dogma de fé entre os seguidores do atual presidente, não só em relação aos cuidados e prevenções contra a pandemia do Covid-19, como contra as ciências e a história.
Tudo que pode contrariar seus interesses, mesmo diante das milhares de vidas perdidas e dos cuidados recomendados pela OMS, é repudiado. Não bastando, nossa história recente vem sendo também renegada por vários meios, a ponto de livros escolares encomendados pelo MEC conterem informações ostensivamente falsas.
Há poucos dias e a cada ano, as comemorações do golpe de 1964, que impôs uma terrível ditadura militar por 21 anos ao país, são insistentemente divulgadas e aclamadas pela extrema direita como “revolução” ou “movimento de 31 de março de 64”.
A única justificativa plausível para tal distorção é a de se evitar associar o golpe militar ao “dia da mentira”, como sempre foi conhecido o primeiro de abril. Mas o que me estranha é que pessoas de esquerda estão assimilando esta inversão, esquecendo-se de centenas de livros e documentos que comprovam o que se passou entre os dias 31 de março e 1º de abril.
No primeiro dia, alguns generais começaram a se manifestar publicamente contra o Presidente João Goulart, enquanto ele, no Rio de Janeiro, buscava apoios e diálogos; no dia 1º de abril ele voou para Brasília, esteve no Palácio do Planalto, de lá foi encontrar sua família para, à noitinha, viajar a Porto Alegre.
No fim da noite, com o Congresso fervendo entre o apoiadores e opositores, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, subiu à tribuna e mentiu para o plenário ao anunciar que Jango havia fugido do país deixando o cargo vago. As acusações recíprocas levaram Tancredo Neves a gritar “Canalhas, isso não é verdade!”. Mas já era alta madrugada e, para todos os efeitos, o golpe estava dado.
Só resta definir se o golpe se deu no dia da mentira ou na madrugada do dia dois de abril. Porém, de tanto insistir, pessoas menos atentas repetem que o golpe, ou pior, “a revolução”, aconteceu em 31 de março.
Atribuída a Joseph Goebbels, o estrategista Ministro da Propaganda Nazista, a frase “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade” passou a ser prática recorrente não só em muitos governos autoritários, como também em campanhas baseadas em fake-news. Sua eficácia, sem dúvida, é inegável.
E assim, a história há séculos tem sido maquiada de acordo com os interesses dos dominantes de ocasião. A começar pelas imagens de personagens dos quais poucas referências existem na realidade. Jesus Cristo, por exemplo, uma figura emblemática, desde a idade média vem sendo retratado como um homem branco de olhos azuis e cabelos castanho claro, o que contradiz as informações de sua etnia e região onde viveu que sugerem ter sido moreno de olhos e cabelos castanhos escuros. Isso se deve provavelmente a um ideal estético da Europa, por onde o cristianismo se espalhou inicialmente. O mesmo se deu com vários monarcas e heróis, até que a criação da fotografia enquadrou melhor a história na realidade.
No entanto é bom ressaltar que, na contramão da cultura dominante, sempre houve uma resistência para que não se apagasse vestígios de um passado que, louvável ou não, existiu de fato.
Em todas as nações, monumentos e praças levam nomes de líderes que, sabemos hoje, foram, no mínimo, desumanos. Encontramos além de memoriais, museus, construções que descrevem crueldades extremas que, por mais que desabonem o passado histórico, não são e não devem ser destruídos ou esquecidos para que aqueles fatos nunca mais se repitam.
Recentemente calorosas discussões questionaram, em todo mundo, a manutenção, ou não, de estátuas ou nomes de figuras repulsivas em ruas e avenidas. A pergunta que se dá é: devemos apagar marcas do passado sangrento, porém real, ou a manutenção desses nomes evidencia as marcas das atrocidades que nos envergonham no presente?
Em contraposição, essa mesma pergunta nos remete a outra: a mudança de nomes de vias públicas e a retirada de monumentos, também não pode se dar num governo totalitário com tendências fascistas e preconceituosas?
É notório que a história oficial da humanidade foi escrita atendendo aos interesses das oligarquias, o que torna difícil uma pesquisa que fuja das documentações registradas e preservadas que, em sua maioria, só averbam a memória desses grupos.
No Brasil, quase nada se sabe em relação à realidade vivida e sentida pelos indígenas e negros escravizados. Mas documentos comprovam os duros castigos, alguns até mortíferos, praticados pelos “senhores de escravos”, para os quais a lei não previa pena alguma.
Da mesma forma relatam, com naturalidade, a frequência com que esses senhores estupravam escravas e até crianças. Às mulheres, de qualquer classe social, por serem propriedade dos pais, ou maridos escolhidos pelo pais, não era permitido estudar além do básico, saírem desacompanhadas, e muito menos tomar decisões em relação às suas vocações. O convento frequentemente tornava-se a sina para as que ousassem romper essas regras.
A homossexualidade no período colonial era condenada pela Inquisição como pecado de sodomia ou luxúria. Mas, embora fosse de conhecimento público de que era uma prática comum em todos os setores, incluindo os religiosos, raros foram os casos atuados. A partir da Independência, passou a ser considerada uma doença.
As grandes mudanças políticas ocorridas no Brasil até as primeiras décadas do século passado, como as proclamações da Independência e República, por exemplo, foram decisões da elite, das quais a população apenas tomou conhecimento, sendo que as primeiras conquistas sociais tiveram início na década de 1930. A partir de então, de forma bastante gradual, uma parcela do povo começou a protagonizar histórias de lutas, essas sim, registradas, embora sujeitas à censura durante vários períodos autoritários, em especial na ditadura militar.
A questão que levanto aqui é indagar até que ponto o desconhecimento do que realmente se passava com o povo brasileiro sem voz, sem direitos e sem memória registrada não colaborou para que grande parte da população continuasse a se apoiar em conceitos elaborados pela elite para julgar o povo mais vulnerável.
Até que ponto a herança machista tornou-se mais violenta diante dos avanços e conquistas alcançados por movimentos feministas. Mais raivosa ainda têm sido as reações homofóbicas aos movimentos LGBTQIA+. Da mesma forma, nota-se que o racismo estrutural veio adquirindo forma explicitamente agressiva e declarada a partir do momento em que a classe média e alta teve que dividir seus espaços sociais, profissionais e estudantis com afrodescendentes.
Até que ponto o descortinamento da realidade e o protagonismo de seus representantes, depois de séculos condenados ao ostracismo, não influiu nas eleições dos representantes do atraso social, cultural e político, como temos assistido nos últimos anos?
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
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