Matutando com a criançada na praça – IREE

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Matutando com a criançada na praça

Luiz Antonio Simas

Luiz Antonio Simas
Professor, escritor e compositor



Eu vejo da janela um bando de crianças brincando na praça e logo imagino que nada representa mais a ideia de cultura para mim do que este fato: a zorra que a criançada faz brincando na rua.

Fico meia-hora observando a garotada quizumbando o chão e acontece tudo que o campo da cultura para mim apresenta: consenso, tensões, recriações constantes, apagamentos, influências mútuas, assimilações de comportamentos, diferenças inconciliáveis, afetos partilhados, jogo, carinho e, eventualmente, porrada. Sem linearidade, mas de forma circular, onde tudo vai acontecendo ao mesmo tempo. Ciranda de roda.

Vamos brincar dessa maneira? Vamos! Não; vamos brincar de outra forma. Você faz assim, o outro faz assado, a gente brinca junto, mas tem quem não queira brincar. Me ensina a chutar dessa forma, eu te ajudo a subir no trepa-trepa, não quero ouvir o que você fala, vamos cantar juntos, vou te ensinar um jogo, quero uma camisa igual a sua, eu canto essa música de outra maneira, eu te ensino isso e você me ensina aquilo, vou te dar um abraço, vou te dar um soco, me dá um pedaço de algodão doce…

Matutando com a criançada na praça

Por cultura, afinal, entendo um conjunto incessante de modos de inventar a vida que caracteriza os grupos sociais: maneiras de nascer, dançar, cantar, comer, amar, ter medo, se vestir, celebrar nascimentos, lamentar os mortos, torcer, rezar, jogar, criar e recriar sentidos para aquilo que, aparentemente, não tem sentido algum: a vida.

Quando me pego pensando nessa encrenca que é o Brasil, percebo a brasilidade como uma praça de elaborações de sentidos que é tensionada (e tensiona), é afetada (e afeta), escapa, ginga, joga, faz mandinga e desconforta o Brasil oficial. Por este me refiro aqui a um projeto institucional fundamentado na exclusão, na espoliação, na aniquilação de corpos, saberes e percepções de mundo desconfortáveis e desafiadores ao projeto colonial normativo, branco e patriarcal.

O Brasil como encrenca só pode ser minimamente decifrado escapando das zonas de conforto do pensamento: identidades fixas, mitos de origem imaculados, essencialismos não sujeitos às rasuras, tensões, criações, recriações, afetações, batalhas, belezas e horrores que confrontam a aventura insistente na vida e os projetos contundentes de morte.

Enquanto matuto sobre isso, as crianças continuam na praça, trocando experiências, expressando sentimentos de mundo em corpos serelepes que, cada um a seu modo, parecem querer alçar voo em direção ao imponderável espaço em que a vida pode ser possível como brincadeira de alegria e liberdade.

No fim das contas, é disso mesmo que deveríamos ser feitos: de trocas, compartilhamento de expectativas, astúcias, desafios inventados, sanidade de corpos miúdos que se arriscam em gangorras, balanços, escorregas. A meninada malandra sabe que a vida não é feita da gente ou do outro; mas da gente e do outro; com o outro. Mesmo que não seja eventualmente por amor. Mesmo que seja só para que a brincadeira – como jogo – incessantemente continue.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Luiz Antonio Simas

É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.

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