O artigo “Massacremos os pobres!” foi publicado originalmente na revista CartaCapital.
O poeta francês Charles Baudelaire, na sua infinita ambiguidade, explicou quase tudo: “Massacremos os pobres! ” É a sua conclamação em Assommons les pauvres, um dos mais belos e incompreendidos poemas em prosa de todos os tempos. Ele massacra um velho pedinte, a socos e pontapés, que, ao reagir e quebrar-lhe os dentes, recobra a sua dignidade. As políticas de segurança pública no Brasil imitam a arte. E tudo leva a crer que os seus ideólogos tenham lido Baudelaire, ou não…
Massacrar os pobres é o todo de nossa política de segurança pública. É o nosso plano solitário e estéril para aplacar o medo.
O regime de produção que aqui se pratica não é capaz de engendrar algo minimamente diferente. As estruturas e as políticas de Estado, aqui, servem, despudoradas, a concentração exponencial de renda. E não há concentração econômica sem aprofundamento das desigualdades, sem pobreza e sem as consequências odiosas da pobreza.
As trocas econômicas desiguais se repetem, como num jogo de cartas marcadas, até que um dos jogadores prevaleça inexoravelmente e, sobre a pilha de fichas, triunfante, observe todos os demais, sem nada.
É compreensível, é humano, que a capitulação absoluta produza irresignação. Famílias destruídas, e são tantas sem emprego, sem moradia, sem educação, sem comida! Soldados de um exército que já não serve mais o sistema e que teima simplesmente em existir. Que existe e que transgride para existir.
O que se espera de hordas de crianças que crescem abandonadas nas ruas, filhos de pais que se perderam e que os perderam, para as quais o Estado dá de ombros? Queremos mesmo que sejam cidadãos exemplares aqueles de quem nos desviamos, por medo, por asco e por indiferença, todos os dias?
Àqueles, para os quais a cultura da ganância e da acumulação (não bastasse a necessidade) proveu ímpeto e afrouxamento a moral, pouco resta além do crime.
E, para um Estado que se rendeu às causas da pobreza, porque a pobreza é o efeito colateral adverso do delírio dos seus senhores, não há alternativa senão erradicar o crime por meio do extermínio dos pobres.
Fazê-lo, contudo, pressupõe uma justificativa moral, porque a hipocrisia é o nosso melhor defeito. Fazê-lo pressupõe observar uma ética das aparências, cuja função é aplacar as impertinentes pressões de avanços civilizatórios que, na verdade, são meramente seletivos.
É, por fim, na massa ordeira e trabalhadora, que troca sua energia vital por miçangas e lantejoulas, onde se encontra quase toda a legitimidade da repressão. É ela, fora dos condomínios e dos carros blindados, a quem a criminalidade aflige em primeiro lugar. E que, bem por isso, sem pensar, atende bovinamente aos seus algozes, para pedir tiro, porrada e bomba, num verdadeiro transe de automutilação.
No Brasil, a repressão e o cárcere são fábricas do crime e da bestialidade profunda. São o lugar do nosso absoluto fracasso, onde o pobre massacra o pobre, onde, num lampejo irrefletido, o justiçamento do pobre mata o pobre a serviço daqueles a quem o pobre incomoda.
Nada, senão um profundo rearranjo de nosso modelo existencial, senão a redistribuição de renda, senão a educação material de nossos filhos e filhas, senão a difusão da solidariedade e do amor serão capazes de alterar esse triste e vergonhoso estado de coisas.
O assassinato de um ser humano pelo Estado é a representação da derrota. É o fracasso de muitas políticas de Estado, em especial as de educação e de distribuição de renda. É o reconhecimento de que apenas uma solução grosseira é capaz de resolver uma crise aguda; uma crise causada, sobretudo, pela incompetência dos que não souberam prevenir a crise. Seja qual for a causa do crime, loucura, necessidade ou ganância, haverá sempre uma política pública capaz de aplacá-la, sem que seja preciso matar.
O discurso sedutor, que no momento se escora sobre a turba brutalizada, farta da violência que a vitimiza, especialmente nas comunidades mais pobres, é aquele que promete matar. É a apologia do assassinato estatal como panaceia, como remédio para todos os males; um lança-chamas apontado inadvertidamente para os pobres, jovens e negros deste país. Sim, pobres, jovens e negros, como as estatísticas (as tão detraídas estatísticas!) não permitem mentir.
A diminuída mancha do crime, que os paladinos da violência estatal ostentam orgulhosos, é falácia, é mentira em números (as tão detraídas estatísticas!), porque os corpos se somam. Os corpos dos criminosos, dos policiais, das inocentes vítimas de balas perdidas são todos corpos do povo pobre e sofrido do Brasil.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Walfrido Warde
É advogado, escritor e presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
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