O massacre do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, diz muito mais do que já seriam capazes de dizer, sozinhos, os assassinatos de 28 pessoas à revelia na favela carioca.
Trata-se do maior morticínio da história das forças de segurança pública do Rio, mas também de episódio que compõe a disputa em série por territórios entre tráfico e milícias.
Mais ainda: a chacina está situada em um contexto mais amplo, de um país no qual se intensifica o fortalecimento e a capilarização desta força social de domínio da violência, em geral formada por ex-policiais e policiais de notada posição fascista e bolsonarista.
O derramamento de sangue do dia 6 de maio configurou-se em um grave desrespeito à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu operações policiais em favelas do estado durante a pandemia da Covid-19 – e por isso merece resposta à altura da Suprema Corte –, mas principalmente serviu ao interesse de enfraquecer o Comando Vermelho (CV), que especialistas apontam dominar a economia do tráfico na região.
Com essa baixa, que custou muito mais do que a hegemonia do crime nos territórios cariocas, mas sim 28 vidas, incluindo a de um policial, quem ganha é o poder das milícias, grupo paralelo com o qual o clã Bolsonaro parece ter estreita relação de proximidade, de acordo com indícios de uma série de investigações de conhecimento público.
Os episódios que apontam o robustecimento das milícias país adentro não param em Jacarezinho, entretanto – daí dizer que esse é um contexto maior, de farto risco às garantias democráticas, ao próprio Estado democrático de direito.
É sob esses elementos que se guarda o presidente para propagar arroubos autoritários e questionamentos às instituições nacionais, o que, somado a movimentos pró-intervenção e fechamento do STF propagado por setores da sociedade brasileira, coloca em dúvida até sua capacidade de transmitir o comando do Palácio do Planalto se derrotado em 2022
Essa relação de ‘namoro’ entre o Planalto e o poder paralelo das milícias se traduz em autorização para o exercício do autoritarismo sempre que for necessário garantir o domínio econômico sobre o crime ou calar adversários, críticas e divergências democráticas.
O ato de violência da Polícia Militar de Pernambuco, que deixou cegos dois homens atingidos por balas de borracha e agrediu fisicamente uma vereadora no exercício do mandato parlamentar durante as manifestações contra o governo Bolsonaro, no último sábado, 29 de maio, são sinais desse mesmo diagnóstico.
Sobretudo ao ouvir os chefes do Executivo pernambucano, Paulo Câmara e Luciana Santos, respectivamente governador e vice-governadora do estado, afirmarem que a ação truculenta não partiu deles. Câmara disse que investiga de quem partiu a ordem, o que dá a conotação da existência de poderes paralelos e ideológicos dentro da corporação.
Em Goiás, onde um professor e militante do PT foi detido por portar uma faixa chamando Bolsonaro de ‘genocida’, não há conotação alguma, há fatos concretos e sem controvérsia. Sequer restam sombras de dúvidas sobre a quem serviam ideologicamente os agentes que participaram da operação autoritária, tentando enquadrar o militante petista na Lei de Segurança Nacional (LSN), instrumento que sobreviveu à ditadura militar brasileira.
Tudo isso, somado às recorrentes imagens publicizadas nas redes sociais com violências brutais contra jovens negros em abordagens fincadas em elementos racistas, deve nos colocar em alerta diante da ‘milicialização’ das cidades brasileiras.
Essa política encontra eco e excitação em uma ‘elite do atraso’ que desvaloriza vidas em nome de poder e dinheiro, que prioriza como “projeto de nação” um Brasil cada vez mais desigual e empobrecido, e da qual Bolsonaro é síntese e reflexo.
Mas esse fenômeno só é capaz de existir e crescer devido à relação deste ‘Estado paralelo’ com o poder e a política, com seus agentes e com o próprio Estado legalmente constituído. E é sobre isso que devem se tratar as discussões da segurança pública e dos rumos a serem seguidos para sanar uma questão nevrálgica da sociedade brasileira.
Até onde são esses grupos que garantem uma certa ordem nos territórios, exigem o pagamento de pedágios para circulação e lucram com venda de ‘Gatonet’ e outros serviços, há na sociedade uma normalização de tal ‘modus operandi’, muito embora eles representem violações graves, em especial contra a população pobre e negra do país.
Mas quando eles passam a significar de forma incontroversa ameaças à própria regularidade democrática, é preciso que mais forças intelectuais se debrucem sobre esse tema, para que que não soframos, lá na frente, um golpe comandado por milícias armadas, repetição do que já vimos em alguns lugares no mundo, ao longo de séculos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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