Maria Martins: sustentar o feminino como política do desejo – IREE

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Maria Martins: sustentar o feminino como política do desejo

Bianca Coutinho Dias

Bianca Coutinho Dias
Psicanalista e crítica de arte



Abro as veias: irreprimível,
Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.

Pelas bordas – à margem
Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.

      (Marina Tsvietáieva)

No texto “O estranho”, Sigmund Freud afirma que o prazer estético sempre implica algo de estranhamento. Através de esculturas e gravuras – além de documentos, publicações e fotografias – a exposição “Maria Martins: desejo imaginante”, em cartaz no Masp até o final de janeiro de 2022, reverbera a beleza da obra de uma artista que atravessa de forma visceral o lugar da estranheza, do erotismo e da feminilidade. As esculturas em bronze, vertiginosas e belas, o envolvimento com o surrealismo e as ficções tropicais de Maria Martins inventam não propriamente um lugar, mas uma oscilação constante que nos convida a um abismo encantado.

Com curadoria de Isabella Rjeille, a montagem aposta em uma espécie de errância aberta no corpo e no mistério que, como um véu ou uma grande cortina, cria espaço entre as obras em uma espécie de dança sensual, produzindo um lugar de enunciação em que vida e obra se entrelaçam. O ato criativo vem, assim, revelar uma experiência próxima da escrita poética: entre o lapso e a agudeza encontramos uma produção que traz no bojo o não-todo, a não-completude, o impossível do encontro amoroso fazer “um”, na medida em que cada sujeito é incompleto na radicalidade e no imponderável.

Entre lendas amazônicas, deuses e monstros, a artista sustenta o desejo em sua errância. Para Murilo Mendes, a obra de Maria Martins trata de provocar, em uma era técnica, a passagem do estado mecânico ao estado mágico. Em seus trabalhos encontramos o corpo erogeneizado – marcado pelo desejo, bordeado pela falta, como vemos na obra “O impossível” que, para Francis Naumam, mostra duas imagens surreais, uma masculina e outra feminina, expelindo raios de respectivas cabeças vazias na tentativa de um encontro sexual que nunca se efetiva, mas que parece forte e potente na sua incompletude. Exposta em duas versões distintas, a escultura é o paradigma do mistério da relação sexual.

O erotismo tem essa atração paradoxal que, segundo Georges Bataille, é a prova do caráter sagrado do erótico em sua agudeza: é mostrar o mais-além em um desejo de transgressão. Entre 1944 e 1949, Maria Martins concluiu várias versões de “O impossível”, colocando em cena o encontro sexual como um confronto perpétuo em que a invenção se dá numa não-equivalência. Podemos ver as cabeças de duas figuras que expressam vazios, dos quais se projeta uma série concêntrica de tentáculos. A cabeça masculina assemelha-se a uma água viva gigante, ao passo que a feminina mais parece uma dioneia, a planta tropical carnívora que, num átimo, fecha suas folhas a fim de capturar presas desatentas. Foram executadas versões distintas e únicas da obra, ou seja, não são cópias obtidas a partir de um mesmo molde, pois a artista usava uma técnica em que, tanto o gesso original, como o revestimento de cera se perdem no processo de criação do bronze final.

As esculturas colocam o vazio no centro do espaço: é a falta lacaniana relacionada ao desejo. Maria Martins trata os volumes com energia libidinal. No dizer de Paulo Herkenhoff, “o desejo enreda e encaixa, prende, tem capilaridades e meandros, atua por teias e tramas, projeta rizomas”.Maria Martins: sustentar o feminino como política do desejo

Através de “O impossível” tocamos algo que alude à relação amorosa: dois seres fragmentados, privados de inteireza e que indagam sobre o estado fundante do homem e do encontro amoroso. A obra expõe o vazio e a incompletude humana e exibe o monstruoso, a paisagem defeituosa da existência. Maria Martins interpreta o desejo como movimento insaciável entre as garras das figuras feminina e masculina e desnaturaliza o desejo, rompendo com a idealização do humano sexualmente ordenado, apontando o aspecto plural e fluido da sexualidade. A escultura exibe a força do desejo, encontrado na fronteira entre natureza e cultura, e em dois corpos que conjugam as noções de sedução, perturbação, ausência e inacessibilidade, delineando um corpo pulsional que conserva a materialidade que lhe é própria, tão própria a ponto de se tornar um estranho para o próprio sujeito. “Meu corpo”, como dizia Roland Barthes, “nunca será o teu”. Mas meu corpo nunca será, tampouco, totalmente meu.

O simples caminhar entre as obras expostas nos mobiliza e faz recordar que o ser humano é portador de lacunas e silêncios, buracos, cavidades. Os monstros e outras figuras associam o humano à perda primordial. São corpos com fendas, com pequenos e grandes orifícios, ocos passíveis ou não de preenchimento, incompletos e, ao mesmo tempo, que presentificam o excesso e a ausência. Com imaginação lasciva e voluptuosa, Maria Martins moldou um encontro tenso, como se trabalhasse a plasticidade da libido e buscasse dar corpo à fantasmática do amor, onde o desejo enreda e encaixa, toca e desvia, atua por teias e tramas. Na fenda aberta pela obra, encontramos o núcleo em torno do qual o saber inconsciente constrói as dimensões de vida e morte e tocamos o tremor do corpo, o ponto onde a vertigem ou o transe permitem imaginar e desejar o Outro na sua alteridade carnal, na sua peculiaridade e diferença e, daí, produzir alguma invenção.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Bianca Coutinho Dias

É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).

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