Maquiavel inaugurou a ciência política moderna. Ao estabelecer a política como objeto próprio de estudo, com leis próprias, ele questionou o paradigma aristotélico da determinação da política pela ética. Diferenciou razões de Estado das razões individuais. Essa operação teórica possibilitou um salto, abriu um novo “continente científico”, em termos althusserianos.
Mas todo grande mestre gera má compreensões. Marx, certa feita, após um encontro com “marxistas”, disse: “tudo o que sei é que marxista eu não sou”. Aconteceu também com Maquiavel. Muita gente encontrou em Maquiavel o respaldo para seus piores anseios, legitimando vaidades desmedidas na disputa do poder pelo poder.
Esqueceram que Maquiavel escreveu O Príncipe com um propósito bem definido: a unificação da Itália, então dividida e sitiada. Que suas orientações para a conquista e manutenção do poder estavam ligadas ao que fosse útil à coletividade. Afirmar que a política não está condicionada à moralidade individual não implica um salvo conduto ao cinismo amoral e egoísta.
Marx compreendeu isso bem. Crítico de qualquer tipo de moral universalista, localizou a política a partir do chão impiedoso da luta de classes. Ao mesmo tempo – admirador de Aristóteles que era – manteve um pé na ética, ainda que apresentada como necessidade histórica. A luta contra a desigualdade social capitalista e pelo fim da exploração do trabalho são o sentido da política socialista.
Uma coisa é jogar o jogo da política para realização de um projeto de transformação social. Outra, bem distinta, é servir a interesses inconfessáveis de poder individual. Nem sempre as fronteiras dessa distinção são muito nítidas.
A esquerda mundial nos últimos 150 anos é tributária do pensamento de Marx. A orientação do movimento operário e dos partidos comunistas e socialistas seguiu a teoria da luta de classes e o enfrentamento à desigualdade sistêmica do capitalismo. Desdobrou-se em diferentes táticas e formas de atuação, promoveu revisões, adaptações e críticas à teoria.
Olhando retrospectivamente esse caminho notamos grandes realizações e terríveis desvirtuamentos. O pior deles foi a consagração de uma leitura equívoca de Maquiavel como sinal de maturidade política. O objetivo final é dispensado como utopia, afogada nas “águas gélidas do cálculo egoísta”. A conquista e permanência no poder tornam-se finalidades em si. Perde-se o encanto e a capacidade de encantar.
Este desvio ajuda a entender a caricatural dificuldade de unidade das esquerdas. É verdade, trata-se de um campo político diverso e isso não deixa de ser uma virtude. Mas muitos dos conflitos reduzem-se ao que Freud batizou de narcisismo das pequenas diferenças. As vaidades na política podem mover, mas também cegar. O futuro da esquerda depende da capacidade do nosso campo em equilibrar o necessário pragmatismo de ação com o projeto de transformação social. Sem um nos reduzimos à impotência de testemunhas da história. Sem o outro, perdemos o sentido da batalha.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Boulos
É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.
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