Majestades Diversas, Bicicletas e Orações – IREE

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Majestades Diversas, Bicicletas e Orações

Ricardo Dias

Ricardo Dias
É luthier, escritor e músico



Cesar estava entediado. Chamou seus centuriões favoritos:
-Lepidus! Fagueirus! Onde estão vocês?
-Ave, Cesar!
-Sacullum plenus est. Divirtam-me.
-Mas somos soldados, majestade! Não somos humoristas!
-Minhas necessidades são simples. Joguem uma torta na cara um do outro, tomem um tombo e quebrem alguns dentes, isso me basta.
-Se me permiti, ó Augusto, por que não fazeis uma longa viagem? Os citas, por exemplo, gostariam de vos saudar!
-E quem diabos são esses?
-Ah, um povo muito simpático, moram perto do Mar Negro, tenho a impressão que no futuro serão bem poderosos. Seria interessante Vossa Majestade estabelecer boas relações.
-E se me permite acrescentar, eles estão estremecidos com os sármatas, seria bom para vossa imagem restabelecer a paz entre esses bárbaros…
-Mas eles não são inimigos de nossos amigos?
-Sim, são, mas também são inimigos de vossos outros inimigos.
-Mas eles são inimigos dos inimigos e inimigos dos amigos? São inimigos de todo mundo, gente estranha…
-Ah, Augusto, a geopolítica é uma coisa complicada que só. Mas temos certeza que vossa sabedoria irá se impor. Só sugerimos que não leve Sua Alteza a imperatriz. Parece que o bom Czar Vladimir é famoso por ficar de olho em moças bonitas…

O fato é que anda difícil fazer alegorias com esse governo. É complicado debochar do deboche, ridicularizar o ridículo extremo. Os memes, por exemplo: nenhum artifício é necessário, basta colocar uma foto real e pronto: meme feito. Mas mesmo com todos os problemas que atravessamos, o país parou por conta de um youtuber que defendeu a criação de um partido nazista…

Umberto Eco tinha TODA a razão. A internet deu voz aos idiotas. O rapaz se viu sendo ouvido (se VIU sendo OUVIDO? Cruzes!) por milhões, então o que seria o burrinho da turma virou o burrinho do Brasil. E agora é impedido pela plataforma de ter espaço. Afinal, vivemos tempos de pena de morte. Nenhuma punição que não a extinção é suficiente. Afinal, alguém acha que o rapaz é nazista? Alguém saiu correndo gritar sieg heil depois de ouvir sua fala? Ele simplesmente, como faz amiúde, não pensou antes de abrir a boca, e deu nisso. Gerou dano? Não. Mas teve sua vida interrompida e seu ganha pão vedado. E partiu de um pressuposto amplamente aceito justamente na sede do Youtube: os EUA. Lá existe um partido nazista. Lá, a Ku Klux Klan é legal.

-Ah, Ricardo, você acha que aqui deveria ser também?
-De jeito nenhum! Sou burro mas nem tanto. Apenas acho que se deve pensar BEM antes de fuzilar outro ser humano. Sou contra linchamentos. Mas acho curioso uma empresa americana cortar a fala de uma pessoa que defende valores americanos – no caso, a existência do partido. Sendo que ele se arrependeu, ao menos verbalmente. Convidado a conhecer o Museu do Holocausto, aceitou, e foi bombardeado com críticas pro ter respondido que “seria um prazer”. Os neolinchadores gritaram: como, “prazer”? Ele tem PRAZER em ver o holocausto?
Não adianta. Fomos contaminados pela violência bolsonarista. As pessoas querem sangue, não vão embora sem beber uns goles.

MAS… O nobelérrimo deputado Kim Kataguiri endossou as palavras do ciclístico youtuber. No fim do mês receberá seu salário normalmente. Ajudou a colocar no poder um presidente que foi responsável por termos QUATRO VEZES a média de mortes por covid em relação aos outros países, que mais desmatou a Amazônia, que se orgulha de ter um bisavô nazista inventado, que recebeu a neta de ministro nazista, ele tem responsabilidade DIRETA nessas mortes. Mas o crucificado é o outro, que não sabe o que diz. Kim sabe MUITO bem. Por algum motivo que me escapa, escapa impune.

Acho que vou perder plateia. Paciência. Levanto da cadeira com a consciência tranquila, me sentindo Gregory Peck/Atticus Finch em O Sol É Para Todos.

PS: Tenho sido chamado às falas por alguns de meus milhões de leitores. Eles dizem, com certa razão, que ando muito amargo para quem tem uma coluna de humor. Para fazer humor com esse cotidiano que temos aí é necessário um talento que, reconheço, não tenho. Mas as recentes tragédias em Petrópolis nos mostraram um inesperado comediante: Sua alteza imperial sereníssima dom Bertrand de Orleans e Bragança. Nosso pequeno príncipe gerou gargalhadas com seu comunicado onde oferece suas orações ao povo de Petrópolis. Sua nobre família recebe um percentual em vendas de imóveis na região, imposto criado para a cidade ter o privilégio de sediar as férias de Dom Pedro II. Ofereceu dinheiro, ajuda material, se ofereceu – já que é velhinho, não tem condições físicas – para ficar com um megafone orientando buscas? Não. Mas, contrito, rezará.

O Brasil é isso, uma sanguessugação sem fim. Um império escroto é derrubado por milicos escrotos, mas continuam recebendo seu dindim. Os herdeiros dos nobres, as herdeiras dos milicos, nossas castas sempre se protegem e aos seus.

Mas sou brasileiro e não desisto nunca. Isso vai passar.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Ricardo Dias

Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.

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