Lei de Segurança Nacional, um dos “fósseis normativos” da ditadura militar – IREE

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Lei de Segurança Nacional, um dos “fósseis normativos” da ditadura militar

Mariana Chies

Mariana Chies
Socióloga e Advogada



Não é preciso muito esforço para se chegar à conclusão de que a Lei Federal n.º 7.170 de 1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional (LSN), é incompatível com a Constituição da República de 1988. Ao prever, por exemplo, que a competência para crimes como ofender a honra do Presidente da República é da Justiça Militar, ou prever proteções à ordem contra “rebeldes”, “revolucionários” ou “insurretos” – o que mais parece um roteiro hollywoodiano sobre a finada Guerra Fria –, fica bastante evidente o anacronismo da norma.

Um “fóssil normativo”, na precisa definição do Ministro Ricardo Lewandowski.

Com o bolsonarismo no poder, dia sim e dia também, há movimentos flagrantemente autoritários que tentam avançar e se consolidar no país, e, ao menos até hoje, tem havido forte resistência e mobilização de amplos setores da sociedade que impedem ações mais drásticas, e que têm conseguido segurar os arroubos anticonstitucionais.

O uso indiscriminado da LSN pelo bolsonarismo para constranger e intimidar críticos do governo é um dos exemplos mais recentes desses movimentos, e uma das consequências mais preocupantes disso é a instrumentalização da lei, através do “Direito”, para, na prática, instalar um novo regime de censura no país.

A Constituição de 1988 fez questão de garantir a liberdade de manifestação e pensamento (art. 5º, inciso IV), bem como a divulgação de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, inciso IX), a liberdade política – ao normatizar que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção filosófico ou política (art. 5º, inciso VIII) –, a liberdade de associação para fins lícitos, impondo como limite a criação de entidades paramilitares (art. 5º, XVII) e o princípio da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX), dentre outros. Os constituintes, portanto, não pouparam esforços para evidenciar que censuras de qualquer tipo eram questões do passado. E que o presente e o futuro seriam pautados na liberdade.

Para além das questões técnicas e constitucionais que certamente irão gerar uma decisão pró-Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal em breve – há inúmeras ações judiciais já em andamento naquela Suprema Corte pedindo para que a Lei seja declarada inconstitucional –, o uso sistemático da anacrônica norma pelos autoritários de agora deveria trazer consigo, também, a discussão do modelo das instituições de segurança pública que temos hoje, ainda marcadas por ranços anti-Constituição. Refiro-me, especificamente, à ideologia de guerra que ainda alimenta e norteia as políticas de segurança pública no país.

Apesar de importantes avanços no campo da Segurança Pública nos anos 1990 e 2000, em especial a criação do Plano Nacional de Segurança Pública, no governo de Fernando Henrique Cardoso e, principalmente, do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, o fato é que os pilares que sustentam as políticas na área permanecem quase inalterados desde antes de 1988. Em outras palavras, os elementos fundantes da Segurança Pública no país permaneceram, no regime democrático, os mesmos do período ditatorial.

De um lado as polícias investigativas (Polícia Civil) sucateadas, que não têm a mínima estrutura para de fato apurar e investigar os crimes mais graves. De outro as polícias ostensivas (Polícia Militar), também sem estrutura, e vinculadas constitucionalmente ao Exército (artigo 144 , § 6º da CF88), e, por isso, calcadas na ideia de que devem ser preparadas para lidar com “inimigos” internos e “combatê-los”, gerando uma instituição que, apesar de desempenhar papel fundamental na segurança no dia a dia de todos nós, sistematicamente abusa de suas prerrogativas e age com violência.

Polícia esta que também se transformou em uma das polícias que mais morre no mundo – via de regra jovens policiais, que são mal pagos e trabalham sem estrutura adequada, e que são levados à participar de uma política de Segurança Pública violenta e que não gera qualquer resultado relevante (basta lembrar que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo se considerarmos a taxa de homicídios como referencial).

Assim é que, passados 33 anos da promulgação da nossa Carta Constitucional, nos parece evidente que não só devemos deixar para trás marcos normativos que não se adequam aos novos tempos de democracia, como a Lei de Segurança Nacional, como também é hora de termos coragem e enfrentarmos a questão da reforma estrutural da nossa Segurança Pública, o que também deve passar pela discussão do artigo 144 da própria Constituição.

Sim, de um lado a defesa intransigente dos valores democráticos constitucionais, muito bem delineados pelo texto de 1998. Mas, também, a necessária reforma deste mesmo texto, para que possamos criar um sistema de Segurança verdadeiramente Público, baseado nos direitos humanos e na dignidade da pessoa humana – seja do agente público, seja do cidadão comum.

Nota de pesar

Participei de alguns debates sobre Segurança Pública com o Senador Major Olímpio, inclusive muito recentemente em evento organizado pelo IREE, em janeiro de 2020. Apesar de divergir incontáveis vezes das opiniões do Senador sobre este tema, seu recente precoce falecimento devido à Covid-19 consternou a todos nós, e tomo a liberdade de dedicar este texto à sua memória e, especialmente, aos seus amigos e familiares, a quem expresso meus sinceros pêsames.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Mariana Chies

É socióloga e advogada. Pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), é coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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