Por Luiz Paulo Bastos*
A distorção legislativa que, durante muito tempo, foi utilizada para justificar que os crimes de injúria racial fossem tratados como algo diverso do tipo penal do racismo terminou. Foi sancionada pelo Presidente Lula a Lei 14.532/2023, que “altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público”.
A sanção da Lei 14.532/2023, que se deu na ocasião em que o Presidente Lula deu posse às Ministras Anielle Franco e Sônia Guajajara, respectivamente Ministra da Igualdade Racial e Ministra dos Povos Indígenas, é, à margem de qualquer dúvida, um grande avanço no combate ao racismo no Brasil. Primeiro porque reconhece aquilo que é ululante, que o animus de quem pratica injúria racial, inegavelmente, é o racismo. Segundo, porque a demarcação legislativa penal perpassa pelo reconhecimento de determinada conduta como danosa à sociedade, bem como da prática reincidente deste dano. Quando se vive uma sociedade que tenta construir a equivocada ideia do racismo reverso, bem como do mito da democracia racial, a sanção de uma Lei com a característica finalística que tem a Lei 14.532/2023 deve ser considerada como uma importante ofensiva contra o racismo.
Há poucos dias, quando o Ministro Silvio Almeida era empossado como chefe do Ministério de Direitos Humanos, em um discurso marcado por muita potência, ele dizia que iria naquele momento reafirmar o óbvio e, dentre as obviedades, ele disse: “homens e mulheres pretos e pretas deste país, vocês existem e são importantes para nós!”. A princípio, as observações apontadas como avanços a partir da Lei 14.532/2023 podem ser caracterizadas como óbvias. Mas, em tempos em que a democracia é vilipendiada em seu cotidiano e em um país que tem o racismo como seu principal elemento de estrutura, o óbvio deixa de ser tão óbvio e precisa ser reafirmado todos os dias.
Essa necessidade é constatada na negação cotidiana do racismo por uma elite branca que ainda domina o Brasil e, mais que isso, se utiliza do racismo como alicerce desta dominação para a manutenção do status quo, da relação “casa grande x senzala”. A injúria racial lida como tipo penal distinto do racismo (o que legalmente foi encerrado com a Lei 14.532/2023) sempre serviu para alimentar o imaginário da subalternização das pessoas negras, tendo um efeito violento e desumano sobre estas.
Esse giro legislativo de efeitos amplos requer algumas constatações simples, óbvias, mas necessárias, a partir do advento da Lei 14.532/2023:
1) há previsão de punição mais dura, imprescritibilidade e inafiançabilidade para os crimes de injúria racial, a partir da sua tipificação como crimes de racismo. Isso deve ser lido como uma vitória parcial dos movimentos antirracistas;
2) a pena possui, para além de um comando punitivista, um elemento pedagógico. Não é a pedagogia esperada, já que o ideal seria a inexistência da incidência criminal, mas, ante tamanho absurdo que é o racismo e a naturalização da sua prática por setores da sociedade brasileira, é medida que se faz necessária;
3) o Sistema de Justiça, principalmente o Poder Judiciário, necessita aplicar a nova legislação, sem mitigar seus efeitos, o que muitas vezes se dá pela empatia entre os brancos que ocupam esses espaços de poder com os praticantes de crimes de racismo, ambos enquanto sujeitos que historicamente detiveram privilégios sociais e negaram ou naturalizaram tais práticas;
4) a aplicação da Lei precisa ser fiscalizada e cobrada pelo Estado brasileiro e pelos movimentos sociais negros organizados. Não há quebra das barreiras da desigualdade e, consequentemente do racismo, sem controle social.
Dito isto, é hora de festejar os rumos de reconstrução democrática que o Brasil volta a seguir, tendo na Lei 14.532/2023 um marco que inspire a retomada das políticas de igualdade racial e combate ao racismo, com orçamento, autonomia, escuta das bases sociais e transversalidade com as demais políticas. O racismo não se encerrará em um ato legislativo, assim como a escravização não se encerrou com o ato formal da abolição. Comemoremos as vitórias, mantenhamos a esperança por dias melhores, mas mantenhamo-nos sempre atentos e vigilantes, pois o racismo não dorme.
*Luiz Paulo Bastos é ativista do movimento negro brasileiro, advogado popular, militante do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ex-Coordenador de Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais do Governo do Estado da Bahia.
Por Equipe IREE
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