La Casa de Papel e a política – IREE

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La Casa de Papel e a política

Guilherme Boulos

Guilherme Boulos
Coordenador do MTST



Ao assistir a última temporada de La Casa de Papel, decidi aproveitar o descanso de fim de ano para reassistir as quatro anteriores. É impressionante como uma das melhores séries da história do streaming – para mim, decididamente, a melhor – traz em sua trama uma verdadeira aula de ciência política.

Como um assalto à Casa da Moeda espanhola se torna um protesto contra o sistema, capaz de mobilizar os sentimentos do mundo todo? Tudo depende da história que se conta, ensina o Professor. Afinal, não roubaram nada de ninguém, ao contrário, fizeram uma distribuição de renda com chuva de euros por zepelins em Madri. Em suas palavras, uma “injeção de liquidez”, por emissão monetária, inclusive em cifras bem menores do que o Banco Central Europeu faz aos bancos privados anualmente. Assim o Professor convenceu a inspetora Murillo a mudar de lado.

O controle da narrativa é essencial. Por isso, antes da segunda empreitada, no Banco da Espanha, anunciam aos quatro ventos os motivos legítimos da ação: a libertação de um companheiro que estava sendo brutalmente torturado pelo Estado espanhol. Do lado do sistema, a inspetora Alícia Sierra decide divulgar falsos segredos de Estado para neutralizar a vantagem que tinha o Professor com a posse dos verdadeiros segredos. E o coronel Tamayo é obrigado a aceitar a libertação e fuga de todo o grupo, com o ouro. Ainda que falsa, a narrativa de que o ouro da Reserva Nacional foi recuperado e os bandidos mortos era o suficiente para acalmar os mercados e recuperar a credibilidade do sistema.

A narrativa é fundamental, mas sempre precisa de um bom tempero. Política é feita de símbolos e emoções. Sem a máscara de Dali, o macacão vermelho, os apelidos com nomes de cidades e a incrível canção Bella Ciao, recuperada da resistência italiana ao fascismo, a simpatia da população ao grupo seria algo difuso, sem materialização. O documentário feito a partir dos bastidores de gravação da série (La Casa de Papel – El Fenomeno) mostra bem o papel do simbolismo nessa história toda.

La Casa de Papel e a política

Foto: Reprodução Netflix

A série também recupera os clássicos, de Sun Tzu a Maquiavel, e demonstra que uma batalha se vence mantendo a unidade de sua tropa e conhecendo as fragilidades do inimigo para confundi-lo e, sempre que possível, dividi-lo. Saber minuciosamente quem são, sua psicologia, para poder antecipar seus movimentos. As negociações telefônicas entre os dois lados são exemplos fascinantes de psicologia aplicada.

É nas dissidências que o plano sofre seus maiores abalos. A disputa de comando entre Berlim e Tóquio termina por levar à morte de Moscou. Depois, a disputa entre Tóquio e Palermo levou à libertação do implacável Gandía, que mata Nairobi e a própria Tóquio. Do lado da polícia não é diferente: a desconfiança entre Raquel e Angel e, depois, a conversão de Raquel o impedem de pegar o Professor. As disputas internas têm um papel muito maior na história da política do que se imagina à primeira vista.

O Professor sabia disso e tentou produzir um ambiente hermético de impessoalidade no grupo para evitar por antecipação grandes atritos. O que não sabia é que essa meta á impossível e, como prova, ele próprio enredou-se nas relações afetivas com Raquel. Mas é verdade que as grandes brechas do plano se abriram com as reações passionais. Rio só é preso porque insistiu em manter contato com Tóquio, que o havia abandonado. Nairobi toma um tiro ao usarem seu amor e culpa em relação ao filho. E, ao final, quase perdem todo o ouro por uma ponta solta deixada por Berlim, que contou o plano a Tatiana, que por sua vez o traiu com seu próprio filho. Ecce homo.

A série é ainda uma denúncia pulsante do machismo em ambos os lados da trincheira. “Empieza el Matriarcado!”, grita Nairobi ao assumir o comando na Casa da Moeda. Tanto Berlim quanto Palermo, os líderes iniciais do grupo nas duas ações, são machistas empedernidos. Assim como os coronéis Prieto e Tamayo em relação a Raquel Murillo e Alícia Sierra. Curioso o desfecho: as duas mulheres mais fortes do grupo, Tóquio e Nairobi, morrem e as duas mulheres policiais mudam de lado. O enfrentamento ao machismo é um fio de toda a história, que tem um ápice quando Estocolmo mata o personagem mais abjeto da série, o abusador Arturito.

Enfim, há muitas lições dignas de nota na série, mas paro por aqui. Já temos spoilers suficientes para quem ainda não tenha assistido. La Casa de Papel é um excelente entretenimento, muito bem produzido, mas é também uma sugestiva aula de política. Do que se deve e, claro, do que não se deve fazer.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Guilherme Boulos

É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.

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