Inventar um mundo com o sonho e o delírio – IREE

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Inventar um mundo com o sonho e o delírio

Bianca Coutinho Dias

Bianca Coutinho Dias
Psicanalista e crítica de arte



O momento político que vivemos é delicado e decisivo, e pede coragem para que afirmemos a vida e a possibilidade da singularidade. Essa é a convocação presente na exposição que mostra o maior número de peças de Arthur Bispo do Rosário já reunidas fora do museu que abriga sua produção.

A exposição “Bispo do Rosário – eu vim: aparição, impregnação e impacto” – em cartaz no Itaú Cultural até 02/10, com curadoria de Ricardo Resende e co-curadoria de Diana Kolker – apresenta um panorama da obra de um extraordinário artista, em diálogo com outros grandes artistas que, de alguma forma, fazem vibrar o modo de estar no mundo e sustentam uma dimensão política, a partir da ampliação de temas e questões que ecoam fortemente.

Na véspera do Natal de 1938, quando um arrastão de anjos tomou posse de seus sentidos, Arthur Bispo deu entrada no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. O jovem negro morava e trabalhava em um casarão da Rua São Clemente, no bairro do Botafogo, onde se esmerava em serviços domésticos e, naquela noite, não compareceu à ceia natalina dos patrões. A partir de então, ao longo de cinquenta anos, o interno da Colônia Juliano Moreira criou e nominou o mundo com uma sabedoria radical que muito pode ajudar na travessia de tempos brumosos e incertos.

De suas mãos brotaram miniaturas, mantos, estandartes e obras para deveriam ser apresentados no dia do Juízo Final. Nascido no interior do Sergipe, seu delírio trazia as marcas da Folia de Reis ou do Reisado e também de sua passagem pela Marinha. Apesar dos eletrochoques e outras torturas então praticadas no tratamento psiquiátrico, Bispo resistiu e, abalado pela invasão de um real, fez sua travessia insistindo na singularidade. No seu minúsculo pedaço de cela, produziu e colecionou um universo imenso de miniaturas, inventou um espaço para a expressão única do sonho e do delírio e revelou a possibilidade de uma linguagem outra que não a codificada pelo mundo normativo e das regras impostas.

Os trabalhos expostos afirmam eticamente a força política do trabalho de Bispo, que passou a vida toda na Colônia Juliano Moreira, onde faleceu em 1989. Lá estão a presença epifânica de seu manto, com o qual pediu para ser enterrado, e muitos outros artefatos, confeccionados com materiais recolhidos do lixo e da sucata. Há barcos e navios que convidam ao desvio e à deriva como forma de resistência, estandartes, faixas de misses e objetos domésticos que revelam a subversão e a grandeza da produção de seu trabalho.

Bispo recusou os rótulos de forma sistemática, mas sofreu pela reclusão em uma instituição de tratamento que propunha uma homogeneização do que se chamava “loucura”. Como afirma sua biógrafa Luciana Hidalgo, “à margem da vida na Colônia, ele se ilhava num pedaço de cela e se esforçava para construir um outro mundo. Neste, Bispo era rei”.

A marcante exposição retoma um importante debate público que teve papel fundamental para a reforma psiquiátrica, e essa necessidade ganha novos contornos com a degradação ética e política que atingem duramente os serviços de saúde mental com tendência ultraconservadora, ameaçando as conquistas básicas da luta antimanicomial no Brasil. Com a arte de Bispo podemos retomar a noção de delírio tal como Freud a concebe: uma tentativa de cura.

Sustento aqui a capacidade de a arte denunciar as tentativas de encarceramento da subjetividade. É importante poder substituir a palavra “loucura” por “delírio”, como um gesto político que abriga em seu seio a potência transformadora da arte ao reinventar modelos de existir e revirar o que está pronto. O delírio pode, assim, sustentar um importante desvio no diálogo arte-loucura e apostar na possibilidade da produção artística consistir em uma reflexão sobre o sujeito e o mundo. O psicanalista Jacques Lacan dizia que somos todos loucos e só estamos autorizados a falar da loucura de dentro dela, pois todo mundo é exceção.

Ao dinamitar categorias e problematizar radicalmente certas noções estanques e fixas, a arte contemporânea e o diálogo proposto pela exposição nos convidam a pensar sobre o sujeito e seus excessos. A potência delirante e transformadora do mundo pulsa numa rede viva e sensível entre as obras e ajudam a compreender o delírio como uma força poética, sem velar a dimensão de sofrimento e de segregação histórica.

Reconstrução e transformação da realidade sobre novas configurações de sociedade e de coletividade, em que cada sujeito pode colocar algo de si. A obra de Bispo do Rosário é a que evidencia diretamente a potência do delírio como reconstrução da realidade e sustenta um enigma que não indica o caminho, mas obriga ao movimento da imaginação, movimento utópico tão urgente nestes dias.

Arthur Bispo do Rosário relata ter recebido uma ordem: “Está na hora de você reconstruir o mundo”. Sua alucinação auditiva e seu legado reverberam que, sim, ele veio. E nos mostra que é possível fazer com os impossíveis.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Bianca Coutinho Dias

É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).

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