Em debate ocorrido há alguns anos, eu disse que as escolas de samba, como diversas outras manifestações orgânicas da cultura, não existem porque desfilam. A sentença precisa ser invertida: as escolas de samba desfilam porque existem. Essa é uma distinção que proponho para que encaremos e priorizemos os desfiles e o Carnaval, de uma forma mais ampla, como eventos da cultura, e não a partir da cultura do evento, useira e vezeira em mensurar tudo a partir da mercantilização absoluta da vida.
Há hoje um número significativo de pesquisadoras e pesquisadores das escolas de samba, comprometidos desde as entranhas das agremiações, em suas maiorias negras e negros, que vem pensando a cultura do samba dentro das reconstruções de modos de vida afro-diaspóricos no Rio de Janeiro a partir de leituras arrojadas de autores como Ana Maria Rodrigues, Haroldo Costa, Nei Lopes, Helena Theodoro e Rachel Valença. É necessário lê-los.
A pesquisadora Amanda Pinheiro fez, em 2020, um ótimo fio no twitter com sugestões preciosas sobre mulheres pretas que vem produzindo reflexões de ponta, diversas e sofisticadas, sobre o assunto. Vinicius Natal e Mauro Cordeiro vêm dando cursos e produzindo materiais sobre o pensamento social do samba de enorme relevância. Thayssa Menezes não é só compositora ou presidente da ala dos compositores da Acadêmicos do Cubango. É também uma conhecedora do gênero samba de enredo. Diversas outras pessoas poderiam estar citadas aqui com igual peso.
O que temos é um movimento amplo e irreversível. O selo Carnavalize têm publicado livros com estudos de alta qualidade sobre o assunto. A Rádio Arquibancada, o Site Carnavalesco, e tantos outros, continuam fazendo trabalhos de referência e divulgação, no meio do temporal. O Bar Apoteose traz debates importantíssimos na rede. Teresa Cristina, com a voz e a importância que adquiriu, tem levantado a bandeira do samba-enredo como um gênero maior da canção brasileira. Leonardo Bruno é um jornalista que vem produzindo textos e obras já referenciais. Pedro Migão faz em seu site Ouro de Tolo um trabalho de memória do samba importantíssimo. É preciso que essas iniciativas e reflexões, dei pálida pincelada sobre elas, sejam cada vez mais divulgadas.
Não há apenas nos dias de hoje um preconceito contra o Carnaval. Ele existe de longuíssima data. Os embates entre um Carnaval popular e uma festa elitista estão colocados desde, pelo menos, o século XIX. As escolas de samba começaram a ser mais aceitas por certos segmentos de elite quando pareceram ser tragadas pela lógica do espetáculo turístico midiático, de exacerbado impacto visual.
Esses mesmos segmentos, todavia, não querem ou parecem não querer reconhecer as gramáticas diversas e camadas sofisticadas de relação comunitária com o mundo presentes na sonoridade dos tambores, no giro das baianas, na artesania de escultores e bordadeiras, na dança ancestral das porta-bandeiras. As inúmeras contradições presentes na história das escolas de samba, que incluem negociações com o estado, empresas de turismo, mídias, contravenção, crime, tendem a jogar na vala comum o impressionante conjunto de saberes que uma agremiação é capaz ainda de reunir.
Nas frestas do que aparentemente é apenas um espetáculo visual anualmente realizado, e muitas vezes conduzido pela Liesa como um relés evento mensurado pelo sucesso ou não de venda de camarotes, pulsam ainda nas escolas de samba formas originais de praticar a vida. Urge defendê-las e, sobretudo, escutá-las.
O povo do Brasil festeja nas frestas. Por culturas fresteiras entendo aquelas que, jogando nas janelas dos muros institucionais, como é a lógica do drible no vazio de Mané Garrincha, inventam constantemente modos garrinchados de vida que buscam a transgressão pelintra, o equilíbrio gingado, a terreirização do território, como estratégias de jogo e combate contra a mortandade produzida pelo desencanto.
É disso que se trata: encantamento e invenção protagonista de sentido de vida dos que foram constantemente espoliados pelo horror do processo histórico brasileiro e, ao mesmo tempo, construíram nas fendas do muro a mais impactante experiência de transgressão da dor: o samba, esse inventor do mundo e da cidade. As escolas, não esqueçamos, são suas filhas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
Leia também

Flip 2023: Pagu, necropolítica e crise climática
Continue lendo...
Derivas êxtimas: uma viagem à Bahia e à Bienal de São Paulo
Continue lendo...
Reinventando o Brasil pela arte
Continue lendo...