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Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida

Diego Jandira

Diego Jandira
Violonista e Cientista Social



Rita Lee, caso se ocupasse apenas em cantar com seu humor inteligente, de equilíbrio sarcástico e cínico, deitando ao chão os tabus da classe média, já teria realizado um dos mais fiéis retratos de São Paulo dos anos 1970. Mas o comportamento da artista deixou marcas bem mais profundas e duradouras que uma “imagem do Brasil”, influenciando diretamente o modo de fazer artístico de uma infinidade de novos grupos e cidadãs que buscavam o rompimento com barreiras poéticas, sonoras e comportamentais. Rita Lee é atemporal.

Dentro da vida cênica e comedida da cidade de São Paulo, entre metrôs e metros quadrados, a artista que também era atriz, estrelando em um longa-metragem dos anos 1980 chamado “Cida, a gata roqueira”, deu vida a personagens que serviram desde sempre como uma forma de trazer à tona com humor, a face mais caricatural do nosso velho conhecido “cidadão de bem”, em um período de ditadura militar no país.

rita lee

A conciliação racial e de gênero da música brasileira, por muito tempo consistiu em silenciar a diversidade, colocando cada um no lugar que lhe era determinado pelo patriarcado: a Amélia, a Escurinha, a Garota de Ipanema… e Rita Lee, já trilhando seu caminho solo a partir do inquietante álbum Build Up, de 1970, feria os pilares da hierarquia social em “Sucesso, aqui vou eu” ou o amor romântico com seu humor irreverente no bolero “Prisioneira do amor”. Sendo assim, não estando mais ao lado de seus antigos parceiros do grupo Os Mutantes, em seus passos iniciais em carreira solo, versando sobre diversos gêneros como o blues, o pop ou o bolero, estavam bases muito bem estabelecidas de sua contribuição como uma das maiores letristas e compositoras do Brasil.

Rita Lee era muito mais perigosa quando, ao seu modo, falava de amor. Como uma onda no ar, ela entrou nas casas como bombas lançadas no meio da sala da família brasileira. A mulher já não era mais a fiel e invalidada companheira do homem, como uma grande parte da música no Brasil até então cantou. Nas canções de Rita a mulher deseja, protagoniza e goza todas as maneiras de expressão do seu próprio prazer.

Foi mais uma artista ameaçada pela perseguição política durante a ditadura militar. Presa por evidências implantadas pelos próprios militares, não exitou em denunciar maus tratos e injustiças sofridas ou presenciadas atrás das celas, e também cotidianamente nas ruas de São Paulo e do Brasil pelo cidadão comum.

Em Rita Lee, as mais diversas personalidades marginais se encontravam, e ainda se encontram, na sua música. Com a sua morte, todo um novo caminho é aberto para que novas composições rompam os limites daquilo que nos cerceia hoje. Rita Lee não morreu, ela ficou encantada.



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Diego Jandira

É músico violonista, colunista, cientista social graduado pela Unifesp e pesquisador musical no projeto Violão Negro Brasileiro.

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