A professora Maria Alice Volpe, no início da década de 2000, convocava a academia a romper o isolamento da pesquisa musicológica no Brasil. A Musicologia deveria integrar-se às demais ciências, humanas e sociais, especialmente à crítica cultural. Seu convite à transdisciplinaridade desafiava os musicólogos a transcenderem o conforto de sua província e projetar o produto de sua reflexão acadêmica para além dos muros da própria disciplina. Após mais de uma década, seria um truísmo reafirmar a relevância da pesquisa musicológica como poderoso instrumento para a análise de nossa sociedade.
O Hino Nacional Brasileiro é, nesse sentido, excelente pretexto para a reflexão musicológica, na busca por resposta a indagações de ordem estética, política e histórica: o que esta obra lítero-musical significa para nós, brasileiros? Apenas da audição de sua melodia não é possível precisar o que tinha em mente Francisco Manuel da Silva quando compôs este tema, no Século XIX, em comemoração à abdicação de Dom Pedro I. No contexto histórico de afirmação da monarquia no Brasil, no qual a obra musical foi concebida, não havia, por óbvio, como dela extrair um significado republicano. O posterior acréscimo de letra à melodia e sua adoção como símbolo oficial da República, com o fim da monarquia, faria emergir um novo significado, certamente insuspeito ao próprio autor quando a entoou pela primeira vez, em comemoração à assunção de Dom Pedro II ao trono brasileiro.
Executado no Quartel General do Exército em Brasília, no Setor Militar Urbano, pelos oficiais, suboficiais e soldados que comparecem à Ordem do Dia, o Hino abre a cerimônia. Emerge desse contexto um exasperado significado castrense, de hierarquia, disciplina e dever cívico, e até mesmo na acentuação das frases musicais e na entonação dos versos transparece a bravura inerente aos heróis dispostos a morrer pela Pátria.
O significado do Hino Nacional, por fim, soa de maneira diversa e surpreendente no salão térreo do Palácio do Planalto, agora entoado pela plateia que lota a sessão de instalação da Comissão da Verdade, instituída para investigar o desaparecimento de ativistas políticos no período da ditadura militar no Brasil. Trata-se da interpretação do mesmo hino, também impregnada de patriotismo, a partir dos mesmos versos, mas os significados extraídos de cada palavra e de cada nota musical são muito distintos da execução militar. Pode-se arriscar que os significados são diametralmente opostos aos da cena anterior, embora haja aqui também vívido patriotismo e sincera disposição de morrer pelo Brasil, pois morrer pela pátria é concretamente do que aqui se trata.
Nas três hipóteses deparamo-nos com significados entre si discrepantes, mas podemos afirmar que todos já estavam contidos no amplo especto de interpretação de um mesmo objeto musical, o Hino Nacional, sem que se pudesse afirmar ser qualquer das performances mais correta do que a outra: Francisco Manoel da Costa pretendeu homenagear a coroação de Dom Pedro II; os militares interpretaram o Hino como parte de uma cerimônia de afirmação de seus valores castrenses e; por fim, a audiência presente no Palácio do Planalto entoou o mesmo hino em memória aos desaparecidos políticos.
Nicholas Cook, o célebre musicólogo britânico, afirma que não existe um significado inerente ou intrínseco à obra musical. Se existisse, a mesma música não se prestaria a fins tão diversos. Existe sim, para Cook, um significado efetivo que resulta da conciliação entre aspectos formais da obra e sua construção social, compartilhável em um determinado contexto histórico. Os objetos ganham significado através da construção social de sentido, o que é estabilizado pela gama de atributos que determinam o ser desses objetos na cultura. Isso permite que haja múltiplos significados, mas todos eles, de alguma forma, contidos no feixe de atributos que a cultura lhes reserva. O que, no plano teórico, concilia as posições de Francisco Manuel da Silva, dos militares brasileiros e dos familiares dos desaparecidos políticos da Ditadura.
À maneira dos objetos musicais, os fatos em geral comportam uma enorme variedade de interpretações, dados os significados que deles podem ser extraídos em determinado contexto histórico. A análise do cotidiano nos convida a dar o salto metodológico de que nos falava Maria Alice Volpe, para além dos muros da nossa província. Em um país dividido entre cidadãos que se consideram progressistas, de um lado, e conservadores, de outro, um mesmo acontecimento político resulta, frequentemente, em interpretações diametralmente opostas.
Tomemos a recente reunião de líderes mundiais em Roma, o G20, em outubro passado, como exemplo para testar a pertinência das diversas interpretações possíveis sobre a participação do Brasil no evento. Os meios de comunicação nacionais e internacionais noticiaram o que teria sido para nós um fiasco, enquanto todos os líderes presentes desdobravam-se para estabelecer alianças no combate à pandemia e às mudanças climáticas. Nossos representantes teriam permanecido isolados no transcurso dos trabalhos, incapazes de estabelecer diálogo com as nações presentes e de firmar alianças favoráveis aos nossos interesses. Apenas a título de exemplo, O jornal Le Monde afirmou que a presença de nosso presidente, não vacinado contra o vírus da Covid e acusado pela prática de crimes contra a humanidade em nosso próprio país, seria altamente tóxica.
De volta ao Brasil, a comitiva governamental apressou-se em construir uma narrativa favorável e positiva em relação à missão diplomática, inclusive pelo fato inusitado de o presidente ter pisado no pé da chanceler alemã e de ter sido, incontinenti, por ela reconhecido. Isto demonstraria nosso prestígio com a líder da mais forte economia da Europa. Ademais, homenageado em Pádua, província italiana de onde provém seus ancestrais, nosso presidente teria sido calorosamente acolhido. O juízo pejorativo formulado pelos meios de comunicação nacionais e internacionais seria fruto, mais uma vez, da conspiração contra os bons propósitos do governo brasileiro, quer nas questões sanitárias, ecológicas ou indígenas.
Poderíamos afirmar, à semelhança do que observamos com o Hino Nacional, de que se tratam de duas interpretações igualmente corretas? O fato histórico não se presta à aferição experimental típica das ciências naturais, mas isto não defere ao observador um campo irrestrito de liberdade de ação (imaginação), para interpretar os fatos segundo critérios estritamente subjetivos ou estéticos. Para Estevão Martins, à teoria da história incumbiria a crítica ao fundamento e à legitimidade de um conhecimento erigido sob bases tão frágeis, cobrando dos historiadores rigor científico, lançando dúvida a respeito de um tipo de conhecimento obtido por acaso ou por simples recurso à criatividade.
A tensão entre o real (objetividade) e o observador (subjetividade), um fenômeno inerente à interpretação dos fatos, está no cerne do ofício do historiador. O caráter metódico da pesquisa histórica proporciona ao saber científico a faculdade de ser controlável intersubjetivamente, vale dizer, seu liame com o real decorre da possibilidade de reconstituir, mediante o pacto metódico, a experiência vivida pelo observador. Na era da pós-verdade, ao contrário, a guerra de narrativas advém de uma concepção niilista do sentido do mundo, segundo a qual interpretar os fatos nada mais seria do que uma elucubração subjetiva, sem qualquer lastro metódico, validada apenas pelo poder de convencimento do observador, no domínio da retórica.
A diferença entre a interpretação dos fatos e a interpretação musical reside, portanto, na forma como se opera a constituição de sentido. Na arte, ela se realiza plenamente quando nossa imaginação, no exercício de uma liberdade irrestrita, extrai do objeto estético interpretado um dentre os múltiplos significados equiprováveis. Na interpretação dos fatos, diversamente, a racionalidade obriga à controlabilidade intersubjetiva, de feição metodológica, submetida à crítica quanto à sua validade, algo completamente desnecessário e até impertinente no domínio da arte.
Não me ocorre um fundamento racional válido para afirmar que, no contexto da pandemia, da crise climática e do extermínio indígena, o Brasil tem interpretado corretamente os fatos, contra a percepção da realidade pelo resto da humanidade. Tratam-se de posições inconciliáveis, quer no plano fático, quer no plano teórico.
Fim.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Antonio Carlos Bigonha
É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).
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