A legitimidade do Estado Democrático de Direito nas sociedades contemporâneas repousa sobre o pacto de mútuo respeito aos direitos fundamentais de todas e todos, em um contexto de solidariedade. Porque se consideram iguais em sua estrita natureza humana, os sujeitos de direito fundam a ordem jurídica, por meio de seus representantes políticos, em uma assembleia constituinte.
Em última instância, as normas jurídicas são legítimas porque realizam o axioma de qualquer projeto político democrático: a efetivação dos direitos fundamentais. Com efeito, não há como conciliar a ideia de igualdade entre aqueles que fundam a ordem jurídica com a possibilidade de uma assembleia suprimir direitos de parte dessa universalidade.
A democracia, nesse sentido, pressupõe a inexistência de uma hierarquia entre os seres humanos, no que diz respeito à sua própria humanidade. Há, no Estado Democrático de Direito, por conseguinte, uma permanente tensão entre a vontade das maiorias, que fazem aprovar as leis e elegem os governantes, e a preservação do direito à igualdade, em sua dimensão profunda, que são os direitos humanos. É dessa tensão que provém, na contemporaneidade, a legitimidade de todo o sistema. Não há, na perspectiva da igualdade democrática, a possibilidade de estabelecer uma diferenciação entre os sujeitos de direito, em sua condição humana, dimensão que se expressa, precisamente, em uma tábua de direitos fundamentais aplicável indistintamente a todas e a todos.
Tábua esta que a soberania popular atribui a si mesma, quando funda o Estado, em um dado momento, e o organiza, por seus representantes, em uma assembleia nacional constituinte. O poder constituinte é, por conseguinte, um evento histórico, uma empresa humana, fruto de um consenso político que se aperfeiçoa pela autorização expressa dos sujeitos de direito, que dotam a assembleia constituinte dos meios necessários para regular todas as relações que a sucedem. Esse poder repousa na soberania popular, exercida em um dado momento no fio do tempo, e não em um acontecimento metafísico que a precede, o que configuraria, evidentemente, um mito. Este mito foi rompido com a modernidade, a partir da queda da Bastilha, no Século XVIII.
Ora, qualquer leitura atenta da Constituição, segundo o contexto histórico que a antecedeu e a legitimou, revelaria que o papel esperado do Ministério Público pelo Constituinte era o de contenção dos excessos persecutórios do Estado brasileiro contra os direitos humanos, notadamente aqueles praticados durante a vigência da ditadura civil-militar no País. E não o de tornar-se um parceiro da polícia. Paradoxalmente, a tutela dos direitos humanos foi harmonizada e compatibilizada, por parcela expressiva dos membros do MP, com o ideal punitivista de combate à corrupção, o mesmo fundamento que legitimara a intervenção militar na década de 1960, implantando um regime de exceção que duraria duas décadas no Brasil.
Passados pouco mais de 30 anos da promulgação da Constituição, quadros retrógrados da Instituição assumiram protagonismo na condução de investigações criminais, colocando-se ao lado da atividade policial, em forças-tarefa e operações persecutórias midiáticas, transformando-a em uma grande delegacia de polícia. Livre dos limites correcionais impostos às instituições persecutórias ordinárias, e desonerado ainda de um controle externo substantivo, o MP migrou rapidamente da missão de ombudsman, que lhe reservara o constituinte, para o comando da investigação criminal, em alguns casos, ao lado dos magistrados, em uma completa inversão de papéis.
É interessante observar que, se coube à Assembleia Nacional Constituinte de 1987 reestruturar a Instituição para a defesa dos Direitos Humanos, foi a hermenêutica constitucional adotada pelos operadores do Direito no Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, que a desconstruiu: a soberania popular afastou o MP dos órgãos de persecução e o dotou de um estatuto para o exercício de uma magistratura; o intérprete constitucional afastou-o da missão de mediador das garantias fundamentais e o reinseriu no sistema persecutório.
A hermenêutica constitucional ensinada em larga escala nas faculdades de Direito no País, nesse sentido, disseminou na comunidade jurídica uma liberdade interpretativa que promoveu a dissociação entre o texto da Constituição, em sua feição positivada, e o processo político constituinte que o erigiu. A adoção de critérios principiológicos abertos conduziu, ao longo dos últimos 30 anos, ao paulatino esvaziamento dos resultados obtidos pela atividade política e pelo parlamento constituinte, cuja fonte de legitimação provinha da soberania popular. Luiz Moreira afirma, nesse sentido, que a Constituição foi reduzida a mero simulacro do processo histórico que a antecedeu.
Fruto da redemocratização do País, as normas emanadas do Constituinte de 1987, quer em sua feição política, quer jurídica, devem ser interpretadas de forma responsável, como afirma Ronald Dworkin. Segundo o autor, a interpretação no Direito envolve a própria dignidade do ser humano, em questões como a vida, a saúde, a liberdade, o patrimônio e todas as garantias fundamentais que terminam por traduzir o núcleo inalienável da natureza humana. O que exigiria do jurista, no caso brasileiro, o respeito ao pacto de solidariedade que fundou a nova ordem política, sobretudo para a superação das ignomínias do passado.
Este pacto foi mitigado, de um lado, sob o pretexto de contenção da escalada da violência urbana e, por outro lado, para o combate à impunidade e à corrupção dos agentes públicos. Como salienta Baoventura de Sousa Santos, esta agenda cumpriu os ditames do poder financeiro global, para a constituição de uma periferia sub-humana na América Latina, em franca desconstrução de nosso processo de redemocratização, ocorrido na década de 1980. Alexandre Bernardino Costa, nesse sentido, afirma que o neoliberalismo propugna pelo enfrentamento e supressão do sistema de direitos e garantias inscritos na Constituição.
O sistema de Justiça, neste contexto, que deveria operar pela afirmação do Direito, em sua perspectiva igualitária e solidária, abraçou o pragmatismo penal de viés autoritário. Este pragmatismo professava o credo de que a formação da culpa se legitimaria no destemor e na íntima convicção de delegados, promotores e juízes, heróis dispostos a investigar e a condenar, independentemente da comprovação da prática de um fato típico, mas em nome da causa maior de combate à corrupção endêmica e à violência urbana incontrolável.
Em um cenário tão adverso, o juiz que era cioso dos direitos humanos do réu passou a ser visto como garantista e leniente com a criminalidade e a corrupção. O juiz punitivista, ao contrário, era um herói, corajoso por enfrentar as instituições jurídicas retrógradas, para o sucesso de sua causa moralizadora. O membro do Ministério Público que não se dispunha a coordenar ou integrar forças-tarefas ou a defender, perante os tribunais, as arbitrariedades cometidas pelos integrantes desses grupos de investigação era visto como contrário aos altos interesses da Instituição, dando ensejo ao fortalecimento de um corporativismo virtualmente incompatível com os direitos humanos.
A recente condenação de um ex-procurador, pelo Superior Tribunal de Justiça, como resposta aos seus arroubos persecutórios, no exato momento em que se completou um ano do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da suspeição de um ex-juiz que atuara como chefe de uma task force, surge como uma luz no fim do túnel a sinalizar que, se há juízes em Berlim para os moleiros, há também juízes em Brasília para os brasileiros. No caso do ex-procurador, há que se aguardar o trânsito em julgado da condenação, em face da presunção da inocência. Afinal, os direitos humanos valem para todos, inclusive para aqueles que os desprezam. Mas, como reza o adágio popular, cada dia com a sua agonia.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Antonio Carlos Bigonha
É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).
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