Formas sociais: uma apresentação – IREE

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Formas sociais: uma apresentação

Alysson Leandro Mascaro

Alysson Leandro Mascaro
Jurista, filósofo e professor



Quando se pensa a respeito da sociedade, tem-se a ilusão de que ela seja composta por uma vastidão de indivíduos que, cada qual ao seu modo próprio, estabelecem relações originais ou singulares. Assim, pensa-se que os cuidados devotados aos filhos são ímpares; o sofrimento e o esforço no trabalho, maiores que de todos os demais; o amor, o melhor e mais intenso – e o amor perdido irrecuperável.

A pretensão de que os indivíduos constroem a vida mediante relações irrepetíveis faz com que creiam que cada momento inventa totalmente suas possibilidades. Trata-se de um individualismo filosófico, sociológico e político. A partir dele, um vasto arco de perspectivas de compreensão de mundo e de ação política se levanta, desde imaginar que com esforço próprio é possível enriquecer até torcer para que o agente político – se honesto, caudilho, estadista, de vergonha na cara, “cidadão de bem” – melhore a situação social.

Ocorre que a sociedade se estrutura mediante uma miríade dessas relações dos indivíduos que, no entanto, não são sempre novas, abertas e distintas. Ao contrário, sofrem as coerções das formas sociais. Quando se pensa na condição ímpar de cuidar dos filhos, a maternidade e a paternidade – a nucleação social a partir da família responsável pelos filhos – envolvem formas sociais que a essa relação de cuidado se impõem. O mesmo com o amor, que lida com formas sociais já dadas – a monogamia, a fidelidade, o casamento, os deveres e as repressões afetivas, compondo um quadro de coerções a que se deve se submeter ou enfrentar.

Quando se pensa na condição de trabalhador, há as formas sociais da economia já dadas – o capital nas mãos do empregador, o empregado vendendo força de trabalho mediante subordinação ao capitalista. Os indivíduos agem por conta própria, mas num contexto de formas sociais já existentes que os constituem e os constrangem.

São as formas sociais moldes ou constrições das relações sociais. São bloqueios e repressões aos indivíduos, como as limitações econômicas, as perseguições políticas, as prisões, as reprimendas sociais. Mas são, também e principalmente, fôrmas constitutivas das possibilidades dos sujeitos. Operam tanto para impedir relações sociais que viessem a ser originais, abertas e indistinguíveis quanto, ainda, para estruturar relações sociais preferenciais, tornadas inexoráveis, desejadas.

Formas sociais são formas de relação social. Não são bloqueios e impulsos inexoráveis, da natureza humana; são históricos. São modos de relação entre sujeitos na sociedade. A língua que se fala, a riqueza que se tem, como são feitos e se acessam os produtos, todo esse é um complexo de relações sociais – entre sujeitos comunicantes, proprietários, consumidores, assalariados. Do mesmo modo que há uma forma social da língua (culta, inculta), há também uma forma social da apropriação (contrato, exploração do trabalho assalariado, herança). A sociedade estabelece suas relações a partir desse conjunto de formas sociais já dadas e em constante dinâmica.

As formas sociais não são atributos naturais nem tampouco teleologias ou funcionalidades. Não há família e capitalismo porque a natureza, o progresso ou a eficiência assim os queiram ou imponham. As formas sociais são a “pega” de relações de exploração, coerção, dominação, opressão ou coesão que não necessariamente deveriam existir historicamente e que tampouco representam uma sociedade melhor, mais meritória ou conforme a um ideal de dever-ser.

Apropriação privada dos meios de produção, exploração assalariada do trabalho, acumulação, família, Estado, direito, racismo ou patriarcalismo são formas que se erigiram historicamente, mediante contradições, antagonismos, lutas. Formas sociais são constrições da sociabilidade que se mantêm porque impõem estruturas de reprodução social. A sociedade, ao dinamizar relações baseadas em tais formas constituintes e repressivas, não o faz porque assim o seja melhor, mas porque assim está estruturada, mantendo-se, daí, mediante a reprodução da exploração e das dominações já dadas.

As relações sociais são dinâmicas, de tal sorte que sempre se estabelecem a partir de opções, aceitações, acordos, combates, submissões, lutas e conflitos variados. As formas sociais são constructos também dinâmicos e históricos, mas mais perenes que a ação de cada indivíduo, grupo ou classe. Estruturas de sociabilidade como a apropriação privada, a extração de mais-valor, a acumulação, o estado, o direito, a família, a ideologia, são forjadas por relações altamente constrangentes, que se impõem às vontades individuais e que, portanto, pouco se alteram, no imediato, com eventuais câmbios subjetivos.

Karl Marx, no século XIX, descobre no modo de produção a estrutura determinante da sociabilidade, impondo-se aos indivíduos. A sofisticação teórica de Marx reconhece que são os indivíduos que compram e vendem mercadorias (a principal delas a força de trabalho), mas as relações sociais são constituídas por formas sociais, como a da mercadoria e a do valor, que se forjam pelas costas destes, de tal sorte que não são os indivíduos, abertamente, que constroem a história conforme sua vontade pessoal.

Nos termos econômicos, desde estudos como os dos ciclos de Kondratiev (ciclos econômicos de ondas longas) até as reflexões regulacionistas marxistas francesas atuais (tratando de termos econômicos médios como os regimes de acumulação e os modos de regulação), pode-se perceber que a reprodução social capitalista se faz mediante formas sociais perenes que se estabilizam em estratégias parcialmente duradouras dentro do capitalismo. Mas, no contexto dessa estabilidade das formas sociais, por se tratar de uma dinâmica de exploração e dominação, sua reprodução porta crises. Estas não são excrescências das constituições e das coerções sociais, são sua natureza. Crises tendem a mudar os termos médios do modo de produção; crises gerais, se acompanhadas de luta, podem revolucionar a sociedade.

A tendência das formas sociais é a de manter sua coerção às relações sociais que, por sua vez, confluem no sentido de reproduzir as formas sociais. No nível produtivo está a determinação última da sociabilidade: a propriedade privada, a exploração e a acumulação engendram formas sociais que lhe sejam derivadas e correspondentes.

O Estado é uma forma do capital, o direito é outra delas. Outras formas sociais, como a família, são reconfiguradas a benefício da determinação econômica: deixa de ser multiparental e passa a se nuclear na relação monogâmica. Assim, o todo social se estabiliza mediante constituições e bloqueios mutáveis historicamente, mas tendentes à reprodução das hierarquias e dos proveitos sociais já dados.

Como se trata da reprodução de uma sociedade exploratória e dominadora, as formas sociais, ao constituírem e coagirem, enfrentam resistências e, eventualmente, até mesmo a contraposição de lutas abertas. Ocorre que os conflitos tendem, via de regra, a ser absorvidos pelas próprias formas sociais – a luta dos trabalhadores se torna aumento salarial, a luta LGBTQIA+ se torna ampliação do direito ao casamento. Mas, em algumas vezes, as lutas podem ganhar força revolucionária e, enfim, superar as formas sociais já estabelecidas.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Alysson Leandro Mascaro

Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).

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