Fogueiras para encantar a vida – IREE

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Fogueiras para encantar a vida

Luiz Antonio Simas

Luiz Antonio Simas
Professor, escritor e compositor



Ritos que envolvem o fogo são comuns em diversos sistemas de crenças. A ligação entre o fogo e forças espirituais, como elemento de renovação, mutação, purificação, atração de sortilégios e afastamento de infortúnios, manifesta-se em múltiplas culturas. Mitos sobre como o fogo foi dominado também são frequentes. Ao mesmo tempo, o fogo, quando não evocado corretamente pelo rito, pode ser o agente da aniquilação da vida. O fogo de São João, Xangô menino, é o do encanto do viver. O fogo das queimadas nas florestas é o da morte.

Os exemplos do fogo da renovação são múltiplos: a fênix consumida em fogo que renasce das próprias cinzas; a crença dos antigos romanos no fogo eterno de Vesta – deusa da harmonia do lar – guardado pelas Vestais; as espiritualidades elementais das salamandras de fogo dos alquimistas; o ritual do Fogo Novo entre os astecas, com o objetivo de evitar o fim do mundo após um ciclo completo do calendário; o fogo purificador da cosmovisão Maia; a força radiante do fogo representado por Agni entre os hindus e Atar no zoroastrismo; as fogueiras acesas para Xangô entre os iorubás e Nzazi entre os congos etc.

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Nos tempos do paganismo, as celebrações relacionadas às fogueiras e demais ritos do fogo costumavam marcar, no Hemisfério Norte, o solstício do verão e a evocação de divindades propiciadoras da boa colheita. Essa herança pagã fundiu-se ao cristianismo popular e se manifesta especialmente nas celebrações dos santos cristãos do mês de junho. Chegando ao Brasil com a colonização portuguesa, o culto aos santos juninos é fortemente ligado às culturas do agreste e do sertão, marcando o ciclo inicial do cultivo e da colheita do milho e as rogações contra a seca. Os ritos que envolvem a festa se manifestam nas danças, namoros, simpatias, e sabores de castanhas, batata-doce, milho, mandioca, pinhão, quentão…

A tradição cristã afirma que João batizou Jesus Cristo nas águas do Rio Jordão, sendo por isso conhecido como o Batista. Seria filho de Isabel, prima de Maria, a mãe de Jesus. Diz a tradição que Isabel e Maria estavam grávidas na mesma época e combinaram que aquela que tivesse o filho primeiro mandaria acender uma fogueira para que a outra recebesse a notícia da natividade. Isabel mandou, então, que se acendesse o fogo no dia 24 de junho, quando nasceu João.

Fogueiras para encantar a vida

O mito que justifica o rito da fogueira envolve as estratégias que o cristianismo encontrou para reencantar os ritos do fogo que marcavam o solstício nas festas da colheita herdadas do paganismo. Há todo um ritual que envolve a feitura das fogueiras: para louvar São João, a base de lenha deve ser arredondada, como a barriga de Isabel. Para os outros santos juninos, a preparação do fogaréu é distinta: a base da fogueira é triangular para São Pedro e quadrada para Santo Antônio (o popular chiqueirinho).

Escrevo sobre o assunto ardendo de saudades. Como ocorreu em 2020, a pandemia inviabiliza as festas dos santos juninos. Não teremos pela segunda vez consecutiva – e é prudente que não tenhamos mesmo – as celebrações coletivas em louvor a Santo Antonio, São João e São Pedro. Ressalte-se que no Maranhão é muito popular também São Marçal, o protetor do Bumba-meu-boi, festejado no dia 30 de julho, quando o povo acende fogueiras de paneiros velhos e palhas secas.

Mas no fim das contas o que é que as festas dizem sobre as sociedades que festejam? Há quem desconfie das festas, encarando-as como celebrações que alienam as comunidades dos perrengues do cotidiano, como se fossem ritos de esquecimento sem maiores profundidades. Há quem confunda festas com eventos desprovidos de sentidos mais amplos que o da mera celebração de datas estabelecidas pelo calendário.

Minha maneira de encarar as festas é outra. Encaro os festejos populares como ritos de reavivamento de laços sociais. É nas festas, sobretudo nesses tempos marcados pelo esfacelamento dos sentidos comunitários da vida, que o indivíduo se dissolve novamente na coletividade, fortalece pertencimentos, tece sociabilidades e cria redes de proteção social. Festejar é também, dentre diversos outros sentidos, se insurgir contra a desumanização, o individualismo e a decadência da existência como experiência compartilhada.

A reconstrução do Brasil como nosso lugar no mundo – que haverá de vir a partir da luta contra o projeto de morte que cravou em Brasília a sua foice sinistra e desencantada – demandará um exercício (a partir do luto) ao mesmo tempo político, poético e transgressor. Quero crer que parte dessa reinvenção virá do redimensionamento dos ritos coletivos de afirmação da vida como experiência, ao mesmo tempo, de dor e gozo. Hoje não é hora de festejar. Amanhã, será.

É conveniente que lutemos cotidianamente. Não esqueçamos, todavia, de separar as lenhas para os fuzuês futuros em que haveremos de chorar os nossos mortos e, ao mesmo tempo, reafirmar a vida com subversiva alegria, pulando fogueiras e cantando xotes e rojões de saudades e esperanças nas noites estreladas de outro Brasil.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Luiz Antonio Simas

É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.

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