Por Samantha Maia
“O genocídio Yanomami está acontecendo”, denuncia o antropólogo Felipe Tuxá em entrevista ao IREE. O Território Yanomami sofre as consequências da invasão pelo garimpo, intensificada nos últimos anos.
Essa crise humanitária, denunciada por entidades especializadas e órgãos de controle havia anos, ganhou evidência desde que o Ministério da Saúde declarou estado de emergência no local em 20 de janeiro. A visita do presidente Lula da Silva marcou o início das ações emergenciais de assistência aos indígenas e a expulsão dos garimpeiros do território.
Desde então, pessoas doentes, muitas delas crianças, têm sido resgatadas para atendimento médico. Há casos de malária e outras doenças agravadas por desnutrição. Estima-se que 570 crianças com menos de cinco anos morreram de causas evitáveis na região durante o governo de Jair Bolsonaro.
Felipe Tuxá, indígena do povo Tuxá Aldeia Mãe, Rodelas, na Bahia, e professor da Universidade Federal da Bahia, destaca que a recuperação do território vai durar muito tempo e deve ser pensada com a participação dos próprios Yanomami.
“A questão da demarcação territorial continua sendo o grande gargalo. Todos os outros direitos, como saúde e educação, só podem ser plenamente exercidos tendo assegurado o acesso aos territórios, com a demarcação e a proteção das áreas”, diz Felipe Tuxá.
Confira abaixo a entrevista do IREE com o especialista sobre este cenário, o agravamento da violência contra os indígenas no governo Bolsonaro, as perspectivas de futuro e a busca por responsabilização sobre os crimes contra os povos originários.
Como avalia as ações mais recentes do governo a partir da declaração de estado de emergência no Território Yanomami?
Felipe Tuxá: É algo bem emergencial, uma resposta para uma crise que não é nova, mas que ganhou novos contornos na medida em que se tornou pública. Há décadas sabemos da presença de milhares de garimpeiros ilegais no Território Yanomami. Isso afeta todo o modo de alimentação, afugenta caça com barulho, polui rio com mercúrio, gera instabilidade, impossibilita os indígenas de transitar, plantar e coletar alimentos. Você tira os garimpeiros, mas ainda assim fica a destruição e a poluição.
O plano de ação para recuperação do território vai durar muito tempo, pensando uma ação mais estruturada de restabelecer a dignidade do povo Yanomami. E isso só pode ser construído com a participação dos próprios Yanomami, que vão dizer, por exemplo, o que é soberania alimentar para aquela comunidade.
E agora a gente tem que começar, passado a retirada dos garimpeiros e contornado a situação de desnutrição, a pensar um plano envolvendo diferentes profissionais, a expertise indigenista, os próprios Yanomami, para entender de que forma a contaminação por mercúrio, por exemplo, pode ser barrada. E isso demora, não é de uma hora para a outra.
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Como foram os anos de governo Bolsonaro para os povos indígenas?
Felipe Tuxá: Houve um recrudescimento sem igual da violência contra os povos indígenas. Em 2018, pela primeira vez um candidato à Presidência, Jair Bolsonaro, usou a pauta anti-indígena como campanha eleitoral. Ele falava que, se eleito, não demarcaria nenhum centímetro de terra indígena. E de fato ele foi eleito e cumpriu com o que falou.
O governo Bolsonaro foi de muitos retrocessos na política indigenista e de muita insegurança para os povos indígenas, alvo de violências diversas, tanto das mais evidentes como assassinatos, perseguições de lideranças, desmonte de política indigenista, quanto de algumas mais lentas, como a contaminação por mercúrio, que aos poucos vai adoecendo a população.
Tivemos um quadro muito nefasto e de muita resistência do movimento indígena. Chegamos agora com outro horizonte com a criação do Ministério Indígena e a nomeação da primeira mulher indígena ministra, Sônia Guajajara. Uma equipe, no ministério, com indígenas muito capazes, e isso nos dá fôlego de olhar para o que está sendo construído.
O que ficou evidente nos últimos anos foi a fragilidade das instituições democráticas, sobretudo nos ataques aos direitos indígenas que eram tidos como garantidos, como o marco temporal. Os direitos constitucionais de acesso a territórios foram os mais ameaçados, junto com a questão ambiental.
Qual a principal questão a ser olhada em relação aos povos indígenas no Brasil?
Felipe Tuxá: Nos últimos 10 a 15 anos, tivemos alguns avanços muito significativos, como a participação indígena mais eficaz na saúde e no acesso à universidade, a educação nas escolas indígenas, a formação de professores.
Mas a demarcação territorial continua sendo o grande gargalo. Todos esses outros direitos, como saúde e educação, inclusive, só podem ser plenamente exercidos tendo assegurado o acesso aos territórios, com a demarcação e a proteção das áreas.
Há grupos com território demarcado, como o Yanomami, mas que ainda sofrem com a presença de garimpo ilegal e retirada de madeira. E tem aqueles que ainda nem têm os seus territórios demarcados, que estão lutando há mais de século, muitas vezes acampados em beiras de estradas, à mercê de milícias locais, sofrendo pressão do agronegócio.
A questão territorial foi e continua sendo a principal bandeira de luta do movimento indígena. Os povos indígenas estavam aqui antes de que esse país fosse fundado. O Brasil foi fundado em território indígena. É essa questão que precisa ser olhada com maior atenção.
Muitos grupos estão há tempo na Justiça com processos demarcatórios que não andam, e isso significa mais violência para eles. As terras indígenas são propriedade da União, e cabe à União proteger, fazer a desintrusão e não permitir que pessoas não-indígenas entrem nesses territórios sem autorização. Tudo isso foi muito falho no governo anterior.
Falar de território é falar sobre as condições para que os grupos indígenas floresçam a partir do que desejam para si. Se você vai na comunidade Yanomami e pergunta como eles querem estar daqui a 10, 20, 50, 100 anos, eles vão ter um plano de futuro. Se perguntar para a comunidade Tuxá, vamos ter um sonho, um projeto de futuro. E são projetos muito específicos, mas que sempre passam pelo acesso aos territórios.
Acredita que atualmente existe uma oportunidade de avanço e de um maior reconhecimento dos direitos dos povos indígenas?
Felipe Tuxá: Estamos vivendo um capítulo não apenas inédito, mas único na história do indigenismo brasileiro. E por indigenismo aqui eu não me refiro apenas às leis e políticas, mas a um sentido mais amplo, que diz respeito a tudo aquilo que fala dos povos indígenas. Literatura, representação na mídia, política, lei, livro didático, esse edifício de imagens, ideias, conhecimentos sobre os povos indígenas. O fato de termos uma ministra indígena e uma presidenta indígena da Funai, a Joenia Wapichana, de termos finalmente parte da máquina pública na mão dos povos indígenas, é inédito e gera por si só efeitos intangíveis, que só poderemos mensurar daqui a 10, 20 anos.
Até 1988, os povos indígenas eram enquadrados numa categoria de relativamente incapazes no ordenamento jurídico do Brasil. Só então nós conseguimos ser vistos no ordenamento jurídico como plenamente aptos a exercer a vida civil, a vida pública, a cidadania. Então veja como é recente e o salto que demos para estar hoje ocupando um ministério.
Os povos indígenas estão construindo e pautando um futuro onde começamos a ser vistos. Isso certamente coloca no horizonte uma conquista que vai se desdobrar em outras à medida que o ministério conseguir realizar o seu trabalho.
Estamos fazendo esse processo de tornar indígena a política dos brancos, e sabemos dos desafios. O ministério indígena vai ter o orçamento para fazer os processos demarcatórios? A Funai vai conseguir, finalmente, ter funcionários para fazer o trabalho? Mas estamos escrevendo um novo capítulo do indigenismo brasileiro e é muito gratificante estar junto, vendo isso acontecer.
O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo investigado por genocídio contra povo Yanomami. Como o tema do genocídio tem sido tratado em relação aos povos indígenas?
Felipe Tuxá: Eu acompanhei a elaboração da denúncia que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) fez contra o ex-Presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia, antes da publicização do caso Yanomami. É uma denúncia muito sólida, que traz dados sobre os Yanomami, os Munduruku, os Guajajara.
Está denúncia está sendo alimentada com dados mais recentes, como as sucessivas negativas de atendimento do governo Bolsonaro diante da crise sanitária dos Yanomami. Isso só traz mais evidências de que houve uma omissão deliberada, e a intencionalidade da máquina pública nas mãos do então Presidente em deixar aquela população à míngua, a morte.
O genocídio Yanomami está acontecendo. Há uma seletividade jurídica e moral a respeito do debate sobre o crime de genocídio. Quando se fala de genocídio, as pessoas têm a imagem das câmeras de gás, de corpos empilhados, massacres em praças, execuções. Só que existem formas diversas do plano genocida ser colocado em operação.
Uma das grandes preocupações do jurista Raphael Lemkin, quando toma como referência a Segunda Guerra Mundial na Alemanha e a situação dos judeus para falar de genocídio, era mostrar que havia racionamento de comida. Os alemães distribuíam comida de forma desigual, os judeus ficavam por último e recebiam pouquíssima comida. Era evidente que aquela situação de trabalho exploratório e dieta muito pobre levava os judeus à morte.
No caso dos Yanomami, o genocídio também acontece com medidas que negam o acesso a uma alimentação de qualidade, ao não permitir que aquela população acesse o território que necessita para viver, ao destruir seu ambiente físico e espiritual.
Você acha que é possível haver a responsabilização do ex-Presidente Bolsonaro por crime de genocídio?
Felipe Tuxá: A aplicabilidade da lei de genocídio tem sido muito negativa para os povos indígenas. Temos ao redor do mundo diversos povos indígenas tentando acessar a justiça pelo paradigma do genocídio, sempre com muitos obstáculos . O que se houve é: “Ah, mas isso aí não é genocídio de verdade” ou “não há uma intenção de destruir o grupo, a intenção é apenas de obter aquelas terras”.
Isso mostra a seletividade do sistema jurídico, que ainda faz pensar se a lei dos brancos foi feita para proteger indígenas. Por que nós que somos indígena temo tanta dificuldade de acessar esse paradigma do genocídio? Nunca parece que é o genocídio de verdade. Isso ficou evidente também na pandemia, no debate que houve se iam ou não colocar o genocídio na peça da CPI da Covid, e tiraram no último momento.
Agora temos uma sinalização do Tribunal Penal Internacional de que a denúncia da APIB contra o ex-Presidente Bolsonaro, feita por advogados indígena, acendeu um alerta para o Brasil. Cada vez mais a narrativa de que há um genocídio está sendo construída e há pessoas facilmente identificáveis como os algozes a serem punidos e investigados. À medida que os sigilos do governo Bolsonaro vão sendo quebrados, vamos acessar a podridão que foi essa administração, conseguir identificar e punir, dentro da lei, pelo delito de genocídio.
Em uma apresentação recente, você falou que “não adianta só denunciar a violência, é preciso entender por que os brancos são tão letais”. Poderia falar mais sobre essa reflexão?
Felipe Tuxá: Quando eu falo que temos que entender por que os brancos são tão letais, é entender por que onde há povos indígenas, estamos lutando para sobreviver. O que estamos tentando desenhar no futuro é que a gente possa lutar para florescer enquanto povo, a partir dos nossos princípios de vida, cosmológicos, de bem viver.
Por que por onde a Europa se expandiu, seja aqui no Brasil, nos países da colonização espanhola, nos Estados Unidos, na Austrália, o percentual de indígena é tão baixo? Não temos nem 1% de indígenas na população brasileira. Aconteceu algo muito eficaz no passado e, se hoje ainda estamos aqui lutando para denunciar o genocídio, talvez não estejamos tão distante assim da história.
Se vemos tanta brutalidade, independente do grupo observado e do território, há uma questão a ser pensada, de que a violência contra os povos indígenas vem sendo perpetuada. E ela tem uma função na sociedade brasileira, que o próprio povo brasileiro talvez tenha dificuldade de se reaver com essa memória, de que este país foi construído em cima de territórios indígenas.
Nós temos uma paisagem urbana que usa nomes de povos indígenas para dar nome às ruas, bairros. Quem eram? Os indígenas que moravam aqui antes. E cadê eles? O que aconteceu com essas pessoas? E aí quando se deparam com indígenas em contexto urbano, é um choque. Como assim tem índio em Salvador, no Rio de Janeiro, em Brasília? Então há uma série de questões para se pensar sobre a letalidade branca, que é o tema da minha tese de doutorado.
Qual a importância de se pesquisar sobre a letalidade branca?
Felipe Tuxá: Ao se perguntar por que os brancos são tão letais, é possível avançar numa agenda de pesquisa para entender os mecanismos pelos quais se destrói grupos indígenas. Por exemplo, a estrutura estatal ainda facilita ferramentas de destruição de povos indígenas ao não permitir que recursos públicos cheguem às aldeias. De modo geral é uma violência tão aperfeiçoada que não gera nem indignação, e tão pouco você consegue responsabilizar um culpado.
Um dos perigos das denúncias é ver essa violência como algo descontínuo. Você liga a televisão hoje e vê uma imagem dos Yanomami, e vai se preocupar com eles. Na outra semana tem dois jovens Pataxó mortos no sul da Bahia. No outro mês, a tragédia entre os Guarani. Você não lembra mais da anterior, mas todas elas continuam. Indagar sobre a letalidade branca é entender que o que acontece com os povos indígenas está relacionado a um projeto de nação.
Queremos punir os responsáveis, mas é uma conversa sobre o que aconteceu e que a gente não quer que aconteça mais. O foco do debate é evitar que o genocídio aconteça. E aí, nesse sentido, as denúncias são extremamente importantes também.
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