Os caminhos para entrar em contato com o sensível e os aspectos mágico e enigmático da existência são muitos e heteróclitos. “Fé e fúria”, filme de Marcos Pimentel, elucida de forma precisa os modos pelos quais as experiências, crenças e instituições religiosas incidem sobre a vida. Se Deus é um nome que damos ao que transcende e escapa, se a religião é o testemunho de nossa incompletude essencial, da falha ontológica que nos constitui como sujeitos, cabe perscrutar os caminhos da invenção de ficções que orientem nossa existência.
“Fé e fúria” se debruça sobre conflitos religiosos existentes nas favelas e subúrbios de Rio de Janeiro e Belo Horizonte e analisa o recrudescimento da crescente onda conservadora que surgiu, essencialmente, de uma relação com a religião que deixou de ser fonte articuladora e aglutinadora de sentido, e cria uma espécie de vazio ético e existencial que culmina em devastadoras consequências no âmbito social e político, nas trocas simbólicas e na relação com a alteridade que vão da intolerância religiosa aos gestos mais extremos de extermínio da diferença, culminando, por exemplo, na destruição de terreiros por traficantes evangélicos.
Em depoimentos colhidos de uma abertura para o desconhecido, Marcos Pimentel avança em escuta fina, acolhendo a fé a partir do enigma e da singularidade. O campo da fé se abre, de maneira a implodir tudo que estava ajustado até então. A dimensão religiosa e política se enuncia desde o título do documentário. Fé e fúria se tornam indissociáveis, e a condição de desamparo – que não é contingente ou passageira, mas fato que estrutura as relações – toma o centro das filmagens em que se investigam os destinos morais e éticos da incerta condição humana e de uma espécie de política do ódio, intrínseca ao neopentecostalismo.
Freud escreveu três obras seminais sobre a questão religiosa: “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar na civilização” e “Moisés e o monoteísmo”. De leituras múltiplas e distintas sobre o fenômeno religioso, os textos abordam o lugar da religião como resposta de uma necessidade de defesa contra a força superior e esmagadora da natureza, surgindo daí o impulso de retificar as deficiências da civilização. Dessa espécie de desamparo que sustenta o discurso religioso, surgem incidências diversas na vida coletiva, desde as mais agregadoras e que dão referências simbólicas aos sujeitos no social até o uso da fé como objeto de compra e venda, de acordo com a lógica mercadológica, em uma espécie de comércio religioso que se apropria de promessas e símbolos do neoliberalismo e incentivam a produtividade e a utilidade do sagrado, de modo a aniquilar a relação com a magia e o mistério, sem que o sujeito possa recolher aquilo que existe de surpreendente, de improvável ou de inquietante na fé.
Se a religião é uma forma de fazer frente às ameaças da natureza e da impiedosa decrepitude do corpo, há também em jogo no contemporâneo uma nova configuração, revelada nas falas do filme: uma espécie de desencantamento nos sistemas de crenças, desencantamento também forjado na miséria e no abandono, no espaço em que o sujeito é abandonado por tudo e, sobretudo, pelo Estado. E é nesse vão, nessa imensa rachadura social, que as igrejas neopentecostais desbravaram um campo de ação. A maneira como o espaço público foi dominado pela domesticação evangélica impressiona, pois se trata de um projeto sólido que penetrou um território aberto pelo abandono do Estado, culminando na apropriação da periferia a partir de uma lógica moralizante e capitalista.
O filme captura imagens e falas que alertam para uma diferença fundamental entre as religiões de matriz africana e as evangélicas, no que diz respeito à maneira como a cartografia e o regime de visibilidades se adentra no mundo: as igrejas evangélicas compram todos os espaços da beira da rua – farmácias, padarias, restaurantes, galpões – onde constroem templos gigantescos, além de negociarem rádios e canais de televisão. Já os terreiros estão nos fundos de quintais, exaltando a precariedade e insistindo na singularidade de uma transmissão de outra ordem. O modo no qual aparecem no campo do visível situam a dimensão ética na apropriação e circulação do mundo e dos espaços.
Os muros da favela são evocados como espaços políticos reconfigurados da lógica neopentecostal: de mensagens construídas no cerne da própria comunidade a partir de referências da música ou do tráfico, para uma espécie de pasteurização do discurso “Deus é amor” como modo de aparição dos signos que, agora domesticados, indicam o caminho de mortificação da partilha do simbólico ou o modo no qual a questão do desejo e do mistério pode se afundar e se aniquilar totalmente. Nas mensagens dos muros a anunciação de um mundo que se aplaina: antes território de pixações de letras de música a mensagens de amor, agora inundados por trechos bíblicos e palavras de ordem de pastores, unindo igreja e tráfico em cruzada contra os terreiros.
Valendo-se de uma linguagem bélica criada dentro da lógica religiosa em grupos paramilitares que se autodenominam, a partir de insígnias de guerra, como “Exército de Deus” ou “Guerreiros de Jesus”, sustenta-se a estética que veio delimitando a política nos últimos anos e culminou com a eleição catastrófica de um “mito” que encarna autoritarismo e pregação moral, inclui defesa das crianças e opera na domesticação do infantil como política, na vigilância da sexualidade e de qualquer desvio assumido como alvo a ser combatido.
Nessa guerra, as igrejas neopentecostais aprenderam a ler e decodificar os signos e o corpo da periferia, capturando seu balanço e ginga e modernizando a roupagem do evangélico que agora pode abandonar o terno e a gravata e dançar funk, pode se apropriar de invenções nascidas na rua e investir na linguagem neoliberal, no design modernizado e nas mensagens edificantes como verdadeiros coachings a delinear uma lógica de viver e consumir.
O dízimo institui os jogos de poder, o pastor diz saber falar o dialeto do tráfico, tudo é aplainado para que a totalidade encontre seu solo: em nome de Deus todo extermínio se justifica, toda aniquilação encontra espaço. Mães de santo são impedidas de circular com roupas brancas, em uma destituição subjetiva alicerçada na lógica brutal enunciada por um integrante de uma facção criminosa: “Nossa religião é o Comando Vermelho”. Impossível não evocar a imagem que salta da sequência das falas, do branco ao vermelho, numa fotografia que tinge o mundo com a lógica bárbara.
Entranhadas nessas questões encontram-se outras, derivadas de feridas sociais profundas como o racismo. A cosmologia das religiões de matriz africana está ligada aos aspectos da ancestralidade negra que são testemunho de uma ética singular, politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de manipulação. É uma cosmologia que articula a fé, a magia e o mistério como forma de resistência a um vasto mercado de autoajuda e de consolo religioso. Trata-se de um movimento fundado na emancipação de um povo que encontra na partilha um solo para reconstruir sua subjetividade. A religião, aqui, vem a ser um dos símbolos possíveis de análise do sujeito do desejo, uma possibilidade de resposta e de autonomia.
A montagem do filme responde a um caleidoscópio de imagens geradas por depoimentos que situam questões de intensa complexidade, articulando subjetividade e dimensão coletiva de maneira primorosa, construindo nossa potência de qualificação do visível e situando a questão da imagem na gênese do sujeito. Se as imagens se apresentam como armas culturais – por meio de uma luta ambígua que tanto produz como destrói imagens, ícones e emblemas – precisamos pensar sobre o ódio e o fanatismo nos diversos âmbitos da vida cultural, social e política, ódio que se desloca para uma verdadeira guerra de imagens pois, se não existe uma imagem da verdade é preciso que se possa sustentar as mediações simbólicas e imagéticas das crenças de cada um, restaurar a imagem onde ela transgride, salvar os fragmentos, saber fazer com a ruína.
Temos um país a reconstruir e é preciso entender as nuances do que nos fez chegar até aqui para que possamos recolher força dos escombros e, neste aspecto, “Fé e fúria”, em cartaz nos cinemas, é um aliado que pode ajudar na compreensão e na travessia dos dias.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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