Exu, Benjamin e as centelhas de esperança – IREE

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Exu, Benjamin e as centelhas de esperança

Luiz Antonio Simas

Luiz Antonio Simas
Professor, escritor e compositor



Nas Teses sobre o conceito de História, Walter Benjamin interpreta a imagem do Angelus Novus, de Paul Klee. Relembremos o trecho famoso:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Na percepção de Benjamin, o passado não é um dado imutável e o futuro não é inexorável. A construção do futuro passa, necessariamente, pela reconstrução do passado e das suas lutas, e o compromisso ético do historiador não se estabelece apenas com os vivos e com os que ainda virão, mas também com os mortos. A escrita da História não é neutra; ela pressupõe embates, e o “progresso” não pode ser considerado norma, sob pena de calarmos diante das catástrofes e silenciamentos que, em nome dele, foram praticados. Foi dessa crença inabalável no progresso, que justificou todo um espólio de horrores, que o fascismo se alimentou.

Escovar a História a contrapelo é voltar ao passado para recuperar as lutas populares e seus personagens – aniquilados pelo peso do horror dominante – e redimensioná-las como centelhas de esperança, a expressão é de Benjamin, capazes de estimular nossas lutas e compromissos. Como alerta o filósofo, a vitória dos inimigos não se estabelece apenas sobre os vivos, mas também sobre os mortos de incontáveis gerações.

A percepção de Benjamin sobre a necessidade de disputar o passado para acender a chama do presente e pavimentar futuros cruza com um dos orikis mais famosos de Exu – o orixá do movimento, do poder do corpo, da alegria e das grandes transformações: Exu acerta a pedra que lança hoje no pássaro que já voou. Por princípio, os orikis – sentenças curtas sobre os orixás – abrem múltiplas possibilidades de interpretação, numa poética aconchegada ao mistério para sugerir ações permanentes de afirmação da vida.

Podemos cruzar o que Benjamin chama de “Anjo da História” com a “Pedra de Exu”. Em um tempo “saturado de agoras”, conforme diz François Hartog, parece que perdemos a dimensão do compromisso com as lutas do passado. À maioria, elas causam apenas certo alheamento, algum enfado e, na melhor das hipóteses, curiosidade.

O pássaro do passado só pode ser alcançado com a pedra que lançamos hoje; seu voo é incessante. Exu não vai ao ontem porque sabe que (nas espirais do tempo) é no presente que a pedra é lançada em busca do pássaro que, em seu voo incerto, pousará no futuro.

Para Exu, nada é um dado imutável e o impossível é uma possibilidade. Conforme escrevi em uma canção (Bravum de Elegbara) em parceria com Moyseis Marques, gravada por Fabiana Cozza, Exu prende água na peneira, guarda o mundo na quartinha, galopa em galo de rinha, avoa em cobra rasteira.

Em 2019, a Estação Primeira de Mangueira, em belo enredo desenvolvido por Leandro Vieira, carnavalizou o fardo e o espanto do Anjo da História lançando no pássaro/passado do Brasil a Pedra de Exu. Chamou os Caboclos de Julho, os malês, os dragões do mar de Aracati, os quilombolas, as Luizas Mahins, os Cariris; para lembrar que o fazer histórico não pode ser desvencilhado da dimensão pedagógica do ensinar a História. Os inimigos, afinal, combatem também a memória dos nossos mortos para impedir que nas espirais do tempo eles animem novas vidas.

Ao falar da percepção do passado no materialismo de Benjamin, Michel Löwy diz que ele nos coloca diante da iminência de tomar decisões no presente. O historiador, afinal, vive de apanhar as já citadas centelhas de esperança que encaminhem outros futuros, conforme o próprio Benjamin ensina.

Centelhas, nas custa lembrar, são partículas que se desprendem de um corpo em brasa; fagulhas, faíscas, descargas elétricas que assombram a escuridão com estonteante velocidade e movimento.

Para as culturas de terreiro, as centelhas têm nome: Exu.

 

Referências:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

VIEIRA, Leandro. História para ninar gente grande. Sinopse do enredo do GRES Estação Primeira de Mangueira. Carnaval de 2019.



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Luiz Antonio Simas

É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.

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