Construir saídas políticas em um Brasil conflagrado por um governo que aposta na destruição e incentiva o fundamentalismo religioso e ideológico passa prioritariamente por construir diálogos com os mais diversos setores da sociedade.
Ter a capacidade de sentar à mesa com aqueles que pensam diferente de nós, em prol de apontar um projeto de país que isole o fascismo, é uma qualidade que terá cada vez mais valor, diante de uma conjuntura hoje inconstante e amanhã, certamente, polarizada.
Na contramão desse diagnóstico, a esquerda deixa predominar no seu seio preconceitos e revanchismos que impedem um diálogo franco com alguns setores sociais. Os evangélicos, principalmente os neopentecostais, é um deles, ignorado pela maioria dos progressistas, como se fosse um crime conversar com os líderes desse nicho popular.
As reações são desproporcionais quando há tentativas de aproximação com líderes políticos do segmento, a exemplo da empreendida pelo líder do MTST e pré-candidato a governador de São Paulo, Guilherme Boulos, que jantou com o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e presidente do Republicanos, Marcos Pereira.
Logo, críticas duras são desferidas contra iniciativas indispensáveis como essa, que visam construir pontes e, em vez de comuns, acabam se tornando sinal de coragem.
A principal dessas interdições, uma hipocrisia baseada em uma conveniente amnésia, indica que não podemos conversar com quem compõe atualmente a base política do governo comandado pelo bolsonarismo – ignorando que essas mesmas igrejas evangélicas deram suporte a governos de coalizão anteriormente apoiados por todos nós.
Mas, pior ainda, as críticas que tentam interditar o diálogo e consequentemente a ampliação do nosso campo de influência não encontram qualquer aderência na realidade do povo.
Primeiro, tais radicalismos ignoram que a base social que nós reivindicamos ser nossa (mas que na verdade disputamos com a direita) está longe de ser ateia, ideologicamente de esquerda, universitária, adepta de discursos ‘lacração’ ou quiçá parte de certa classe média branca – características marcantes de quem adota esses discursos impeditivos ao diálogo.
Ao contrário, falamos de uma base social – e quase nunca falamos para ela – marcadamente evangélica (31% da população brasileira, segundo dados de 2020 do Instituto Datafolha), negra, pobre, subalternizada pelo capitalismo, e que encontrou no apoio das igrejas um conforto para a realidade devastadora do desemprego, da violência, do abandono e da falta de assistência que assola a vida da maioria dos brasileiros.
Optar por ignorar essa base social, como faz parcela majoritária da esquerda atualmente, significa abrir mão dessa base e, em última instância, de disputar o próprio poder. Mais incoerente ainda é reivindicar essa base como base da esquerda, mas descartá-la.
Também significa que, ao não conversar com os líderes deste segmento, abrimos mão de disputar uma pauta mínima comum a nós e a eles (o empobrecimento do povo não interessa a ninguém), com base na defesa de direitos fundamentais que estão no centro da política que defendemos para o Brasil e, obviamente, em limites programáticos.
Uma disputa de pauta que nos ajude em avanços de diversas lutas que travamos tendo essa mesma turma do outro lado. Que nos possibilite, por exemplo, conversar sobre diversidade religiosa e o combate à violência contra as religiões de matrizes africanas, o respeito aos direitos e à liberdade da população LGBTQIA+, o combate às fake news baseadas na pauta de costumes, entre outros assuntos que requerem negociação.
Diferentemente dos que acreditam na pauta máxima como forma de luta, ainda que isso signifique não acumular em nada para quem vive sofrendo, acredito na equação entre pragmatismo político e programa político. Conciliar interesses para a garantia de vitórias, avanços e para preservar vidas é responsabilidade de quem entende a realidade prática do povo pobre.
E me parece que a maioria dos que interditam esse debate calculam muito mais os benefícios políticos de discursar para um segmento específico, muitas vezes usando a catástrofe como palanque, e pregam radicalismos do alto do conforto de suas casas. Isso, sim, é capitular.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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