Elza Negra, Negra Elza – IREE

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Elza Negra, Negra Elza

Diego Jandira

Diego Jandira
Violonista e Cientista Social



Elza Soares nos deixou no último dia 20 de janeiro, consequência de causas naturais. E por mais que soe insólito, existe um tanto de glória e sabedoria na morte natural de uma mulher negra. Negra de uma vida longínqua, Elza de uma vida futura.

Quem ia a uma apresentação de Elza Soares buscava aquele ambiente onde a sua voz única assumiria o espetáculo. Buscávamos uma liberdade enérgica e meio selvagem – e por isso bem brasileira – que apenas suas apresentações possuíam. Porque o que ela pensava, dizia, cantava, era Elza Soares.

Elza do Rio de Janeiro que vive essa instabilidade toda da política-republicana-do-Estado-de-Direito-brasileiro, que não quer governar para aquele tanto de gente preta que tem lá no topo (dos morros).

Aos cinco anos de idade, Elza conta ter sido acordada por São Jorge, o santo guerreiro. Naquele momento, a menina pediu ao santo que a protegesse das surras que levava do pai, ao que São Jorge havia respondido que Elza ainda teria muito para apanhar. Desse episódio, Elza conta que compreendeu que a vida, essa sim, tinha muitas surpresas lhe aguardando. Mais tarde, em 1999, Elza iria receber o prêmio de “A melhor cantora do milênio”, na cidade de Londres, Inglaterra, justamente onde São Jorge é o santo padroeiro.

A fatídica pergunta, “De que planeta você veio, menina?”, de Ary Barroso, não surtiria efeito esperado sobre Elza Soares. É possível que os percalços de sua vida somados à própria batalha pessoal para ter condições mínimas de se apresentar no programa de rádio “Calouros em Destaque”, tenha lhe tirado o peso da fama polêmica das chacotas do apresentador: “Eu vim do mesmo planeta que você, do planeta fome!”. E cantou a música “Lama”, composição de Alice Chaves e Paulo Marques, calando o riso geral da plateia.

Elza Negra, Negra Elza

Foto: Reprodução

A composição “Mulher do fim do mundo”, de Alice Coutinho e Rômulo Fróes, e eterno testamento profético e façanhudo, “Mulher do fim do mundo /Eu sou/ E vou até o fim cantar”, seu tom inconformado – para não dizer artisticamente “zen-raivoso” da interpretação – expressa para novas gerações uma imagem para além do véu de luta pela sobrevivência, sofrimento, quedas e reinvenções que marcam a história de Elza.

É uma lição de amor próprio o que Elza faz quando consegue elevar a uma estética única, uma voz que nasceu dos gemidos causados pelo peso excessivo das latas d’água que carregava na cabeça, quando criança, para ajudar em casa. Elza pegou da sua condição social aos seus ancestrais do samba, e misturou toda a instabilidade da vida em um canto singular que nenhuma escola no mundo poderá te ensinar. Talvez aquela característica implosiva que possuía o seu canto, um tipo de “grito para dentro”, tenha espantado para longe os demônios internos, praticando assim com o seu canto, a sua própria cura.



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Diego Jandira

É músico violonista, colunista, cientista social graduado pela Unifesp e pesquisador musical no projeto Violão Negro Brasileiro.

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