A sociedade tem na economia seu maior elemento estruturante: o modo pelo qual os seres humanos produzem, apropriam, circulam e distribuem é decisivo para determinar as próprias formas relacionais da política, da família, da ideologia, dos valores etc. A determinação econômica é de tal sorte fulcral que, numa conhecida imagem, Marx a considera a infraestrutura da vida social, tal qual um alicerce que determina por onde se levantarão as paredes de um edifício.
Basta fazer uma rápida reflexão pessoal para entender qual é o alicerce da vida de cada qual na sociedade: é possível voluntariamente trocar de partido político, de religião, de gostos culturais; não é possível no entanto, voluntariamente, deixar de ser trabalhador para passar a ser capitalista. A base econômica é, efetivamente, o determinante último do todo social.
Tudo é econômico nas sociedades humanas. A política, a guerra, a paz, os valores, a cultura. Mas, ao se tomar o plexo econômico em seu âmbito estrito, seu cerne é o modo de produção. O acesso aos meios de produção – terra, tecnologia –, os vínculos do trabalho – se compulsórios, se contratuais –, as razões da produção – se para o consumo, se para a venda – são questões decisivas para situar o campo interno do que se chama economia.
Modos de produção são grandes mecanismos de estabelecimento de vínculos sociais no nível da produção material da vida, determinando o trabalho, a apropriação e a distribuição dos recursos e produtos. Consolidam reiterações de vínculos sociais e econômicos por grandes tempos históricos, de tal sorte que, via de regra, a vida dos sujeitos começa e acaba constituída e coagida pelos termos econômicos determinantes: nascendo-se escravizado, servo ou assalariado, assim costuma-se desenvolver uma vida toda até morrer. Os indivíduos, os grupos e as classes se obrigam a estabelecer relações, vínculos e estratégias conforme as coerções que sustentam a reprodução da sociabilidade.
Os modos de produção não são os mesmos historicamente. Não há uma base econômica geral ou única da qual modos de produção seriam suas variações. Pelo contrário, modos de produção são grandes arcabouços estruturadores da sociabilidade que guardam suas especificidades e geram suas próprias dinâmicas particulares de reprodução social.
Não se pode ler, teleologicamente, uma escada que viria da pré-história ao capitalismo, passando pelo escravismo e pelo feudalismo, como se fossem fases de aperfeiçoamento lógico de um mesmo impulso econômico geral nas sociabilidades humanas. Mas, ainda que se abandonem os vícios da teleologia, tampouco é possível reconhecer compósitos gerais que se arranjam, de maneiras variados, conforme os modos de produção, de tal sorte que estes fossem resultados de constantes econômicas gerais.
Não são todas as sociedades que são economicamente fundadas na acumulação. Não são todas as sociedades que se fundaram ou se fundarão na separação entre os trabalhadores despossuídos e os detentores dos meios de produção. Assim, os modos de produção não são variações de uma mesma base econômica geral: são, efetivamente, modelos constitutivos, estruturantes e coercitivos da sociabilidade singulares, distintos e específicos.
Isto permite compreender que a história da economia nem tem linearidade lógica nem tampouco terá que repetir o passado ou o presente no futuro. Em termos imediatos, as formas econômicas específicas determinam a história; em termos amplos, a historicidade apresenta conjugações de formas sociais e econômicas variáveis e abertas.
Marx, quando aperfeiçoa a compreensão daquilo que chamou de crítica da economia política, percebeu que os modos de produção havidos na Europa se deslindaram numa sequência que foi do escravismo ao feudalismo e deste ao capitalismo. Mas Marx reconhece a existência de outros modos de produção – como aquele de cariz asiático – e, com isso, apontou para o fato de que esse rol não é taxativo, e sim apenas exemplificativo.
Outras sociedades tiveram outros modos de produção e outras sequências entre eles. Ao final do século XX, um sofisticado debate havido no Brasil entre teóricos como Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender permitiu compreender que, antes da chegada ao capitalismo, a sociedade brasileira não foi feudal como as europeias (tal qual já o havia apontado Caio Prado Júnior). Houve, entre nós, características econômico-produtivas bastante próprias. No Brasil e em outros espaços das Américas, pelo período colonial, deu-se um modo de produção que se pode identificar como escravista colonial.
Numa dada sociabilidade, nunca há um modo de produção que se apresente em estado puro. O escravismo antigo conheceu vínculos contratuais e mesmo algumas relações baseadas na mercadoria. O capitalismo, por sua vez, manteve-se por muito tempo imiscuído na Europa com relações feudais e, por todo o mundo, até hoje ainda se entrelaça com algumas relações similares à escravidão.
Mesmo o modo de produção escravista colonial, havido no Brasil até o século XIX, conheceu no seu seio a contrapartida daquilo que Ciro Flamarion Cardoso chamou de brecha camponesa. Ocorre que mesmo que variadas outras esferas relacionais-produtivas existam no seio de cada formação social, esta tem uma coesão sempre pelo modo de produção determinante. Assim sendo, é tal modo econômico majoritário – ainda que não exclusivo – que dá a determinação das específicas formas sociais que tendem a se tornar coercitivas nessa totalidade.
Boa parte dos teóricos da economia, nos últimos séculos, naturalizou o capitalismo como modelo geral da economia, fazendo uma transposição indevida do modo de produção atual a outros tempos e sociabilidades, de tal sorte que campos como o da macroeconomia e o da microeconomia, que só dizem respeito a internalidades da reprodução econômica capitalista, passam a ser considerados como uma tecnicidade suficiente e geral, de leis invariáveis e mensuráveis matematicamente.
No entanto, as melhores leituras econômicas, dotadas de ferramentas científicas críticas, buscam compreender a economia imbricada com a própria historicidade das sociedades, sua condição exploratória e dominadora, suas contradições e crises. Alcançar a economia pelo modo de produção é tanto conhecer suas bases e seus mecanismos de reprodução quanto, também, seus limites e suas fragilidades, apontando para a superação da própria sociabilidade já dada.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Alysson Leandro Mascaro
Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).
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