Os dados que o Brasil acumula durante 12 meses de pandemia da Covid-19 são assustadores: mais de 261 mil mortos, quase 11 milhões de infectados, menos de 4% da população vacinada e taxas de até 1.900 mil mortos por dia – o que corresponde a aproximadamente 10 aviões de 200 passageiros caindo por dia no país, para quem gosta desse tipo de ilustração.
Todos esses elementos conformam o pior momento desde o começo da infecção por coronavírus em terras brasileiras e a pior crise social, sanitária e política da nossa história. Mas nada disso, nem mesmo as 260 mil vidas perdidas, é capaz de superar as prioridades capitalistas: lucro, produção e crescimento.
Sob o argumento de manter a empregabilidade (um sonho cada vez mais difícil de se realizar no Brasil, mesmo antes da pandemia) e de garantir a economia girando, o poder público em todos os níveis (municipal, estadual e federal) abre mão de implementar políticas públicas eficientes de combate ao vírus.
Parecem, mesmos os estados e municípios, entregues às chantagens de setores da economia que, de fato, sofrem com a crise desde março de 2020 e sofreriam ainda mais profundamente com um fechamento drástico das cidades, mas que não podem jamais se sobrepor às vidas ceifadas por mero descuido governamental através de opções políticas.
Faltam gestão e políticas públicas adequadas, mas, principalmente, coragem dos governantes para enfrentar, em prol de medidas corretas de combate à pandemia, as pressões do comércio, do setor de serviços e de players de outras áreas.
É uma encruzilhada difícil de atravessar, mas que requer entender que a crise está próxima de ser inadministrável. Figuras respeitadas da ciência nacional, como o médico neurologista Miguel Nicolelis, têm alertado desde cedo sobre a catástrofe que se aproxima diante da incompetência do Estado brasileiro no que diz respeito ao isolamento social.
Mas nada tem sido feito à altura do tamanho do tsunami que se avizinha, para além de “toques de recolher” e “toques de restrição” em horários inexplicáveis.
Com medidas restritivas insossas, sem a intensidade que o momento pede, os governadores tentam se opor ao abandono criminoso do governo federal, que prega tudo ao contrário do que a ciência orienta e incentiva o desprezo pela vida e pelo conhecimento na sociedade brasileira, mas esbarram no poder econômico e nas convicções egoístas destes, travestidas de amor pelo trabalhador.
Acabam, esses governantes, tornando-se contrapontos frágeis e dissolutos ao negacionismo, igualando suas ações em muito ao Ministério da Saúde, apesar de adotarem narrativa política diferente daquelas propagandeadas pelos chefes da União.
Engrossam o tom contra o presidente genocida que ocupa o Palácio do Planalto, a fim de abocanhar a parcela dos revoltados com as mortes incontáveis, mas erram ao implementar lockdowns que liberam para funcionar templos religiosos, espaços esportivos, academias, e muitos outros serviços que estão anos-luz de serem essenciais e são conhecidamente espaços de contaminação em massa.
A explicação é óbvia. Tratam-se de medidas populistas, para atingir a outra parcela da sociedade que se mobiliza por tais argumentos, que evidentemente são incapazes de nos salvar das cenas dramáticas que se anunciam em um trailer cinematográfico de uma trama distópica.
Até hoje, esses atores públicos preferiram gastar com a abertura e reabertura de mais leitos – o que é importante como ação contenciosa para assistência aos contaminados, mas não tem nenhum efeito preventivo – do que garantir renda básica e outras diversas formas de promover a permanência da população em casa por 21 ou mais dias seguidos, o que, aí sim, seria um lockdown severo e com eficiência anticontaminação, conforme especialistas.
Terminaram, esses estados, tendo que gastar ainda mais do que gastariam com medidas restritivas reais, quando colocamos na conta o preço intangível de tamanha tragédia. Vários sequer possuem espaço para guardar os corpos dos mortos pela pandemia e pelo populismo e adquiriram contêineres refrigerados para manter as vítimas mortas – um doloroso simbolismo.
De quebra, terão como resultado a mesma economia combalida que tentam impedir de se aprofundar, mas com uma diferença: menos vidas inocentes preservadas.
A conta, portanto, não fecha. Mas produção, dinheiro e um falacioso discurso em defesa do desenvolvimento econômico e social continua se sobrepondo à vida do povo, conforme prega a Bíblia do capitalismo selvagem e primitivo – cepa deste regime que vigora no Brasil e, eu diria, é parte da identidade dele enquanto nação.
Enquanto isso, seguimos rumo aos 300 mil mortos. E sem hora para parar de contar corpos.
Salve-se quem puder.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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