Dona Maria passou a vida cuidando dos filhos dela e olhando as crias da vizinha. Marido, se teve, não lembra. Lembra dos seus amores e de homem por quem se apaixonou e se entregou para depois, grávida, cheia de sonhos e ainda jovem, ser destratada e deixada à própria sorte quando, com o coração ululante, informou sobre a sua gravidez àquele que acreditava ser seu príncipe. Era um sapo. Na verdade, um sapo asqueroso.
Ainda assim, seguiu adiante. Teve o filho, trabalhou com toda sorte de possibilidades – que eram desde vender geladinho, passando por salgados na comunidade onde morava e nas portas das escolas públicas e água mineral nas festas populares. Nessas, muitas vezes por estar sem licença, que custavam os olhos da cara, acabava tendo não só as mercadorias apreendidas, mas com elas a possibilidade de comprar o alimento para garantir a alimentação do filho que ela cuidava à revelia do pai. Ficava com os olhos mareados, mas seguia.
Nunca foi de desanimar e assim tocava a vida. Levantava, sacudia a poeira e dava a volta por cima. Quando o filho fez 5 anos, Maria saiu em busca de um trabalho formal e falou com sua mãe para olhar a criança. Também viu no projeto social existente no bairro uma possibilidade muito boa de garantir alimentação da criança enquanto diminuía seus gastos. Mas isso ela só pensava, nunca teve coragem de verbalizar para ninguém.
E o menino seguia no projeto social e começou a remar aqui e acolá. Tanto pelo projeto como para atravessar as pessoas da comunidade em um misto de diversão e altruísmo. Sabia que era só uma criança e desejava brincar, pegar frutas com os amigos, correr de um lado para o outro, jogar uma pelada… Enfim, fazer o que as crianças fazem.
O tempo foi passando e, quiçá por vocação, talvez por perceber que ao seu entorno as possibilidades praticamente inexistiam, ou até mesmo por fuga que o esporte lhe possibilitava, como as viagens para competir, foi se dedicando mais e mais. Imaginaria ele e Dona Maria o que o futuro lhe reservava? Não creio. Aliás, dali onde morava, em casa simples, em local remoto no interior da Bahia, a realidade era seca e o rio ultrapassava a questão geográfica. À noite, deitado em sua cama ou em colchão jogado ao chão, seus pensamentos começavam a se transformar em sonhos a conduzi-lo por um novo rio de possibilidades.
Assim seguiu, vendo por vezes as aulas do projeto social serem suspensas por falta de recursos, vendo o desespero do seu professor que tirava do próprio salário, que fazia vaquinha na cidade e sentia as pressões familiares pela falta de retorno, mas ainda assim mantinha as atividades sempre que possível, entre altos e baixos, porque sabia o quanto as suas ações eram importantes para a comunidade.
Depois de ver seu pupilo ganhar várias medalhas locais e estaduais, o treinador e incentivador conversou com Dona Maria, encorajando-a a permitir seu filho viajar para outro estado, respirar outros ares e, desse modo, garantir alcançar seus sonhos. O custo era alto: a distância da mãe, da avó e dos amigos de infância. Mas a aridez ao redor e o sonho na cabeça o impulsionaram a seguir. E assim foi.
Ali foi percebendo a sua condição racial, se espelhando em artistas e músicas de negros como ele, sabendo que para ele era tudo mais duro e mais difícil. Não era mais um Rio de Contas, era necessário, sim, contar uma outra história. E o fez. Até ouvir o tão famoso “É do Brasil”!
De fato, nos rincões mais distantes desse país, principalmente desse Norte e Nordeste tão sofridos, em meio a esse povo negro, que habita de forma desumanizada bairros periféricos e com tantas Marias e seus filhos e filhas com histórias de luta e superação, temos muitos projetos sociais comunitários e sem qualquer apoio ou suporte governamental, mas que garantem a base a esses subcidadãos chamados Isaquias, Bias, Rebecas, Heberts, Anas, Daianes e Marcelas. Essa garotada que vale mais do que ouro é mesmo do Brasil?
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Marcos Rezende
É historiador, mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela Faculdade de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Ogan de Ewá e OjuObá do Ilê Axé Oxumarê, fundador e membro da Direção Nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN), vereador suplente em Salvador (BA) e militante do PSOL.
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