Direito político ao voto para que(m)? – IREE

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Direito político ao voto para que(m)?

Mariana Chies

Mariana Chies
Socióloga e Advogada



Uma das maiores expressões da cidadania é o voto. Quando votamos, escolhemos as pessoas que serão responsáveis por implementar as políticas públicas e sociais no nosso país. Em uma democracia, é o povo que elege seus representantes. Eles estão lá, nos cargos eletivos, por conta das nossas escolhas.

As eleições dos Estados Unidos têm movimentado muito as discussões a respeito da democracia, do mercado e do futuro do mundo. Será que o Partido Democrata conseguirá um candidato à altura para derrotar Donald Trump? No dia 3 de março de 2020, 14 colégios eleitorais norte-americanos escolheram seu candidato do Partido Democrata, a chamada “Super Tuesday”. Mesmo assim, a escolha ainda não está definida, apesar de ficarmos mais próximos do nome que virá a disputar a eleição em novembro desse ano.

Não é muito claro para nós, brasileiros e brasileiras, o funcionamento do processo eleitoral do Estados Unidos. O modelo de votação deles difere em dois pontos fundamentais do nosso: o primeiro está na modalidade do voto em si, que não é obrigatório. Vai à urna quem quer, e se não quiser, também não precisa apresentar nenhuma justificativa. A segunda diferença reside no fato de que existe um caráter indireto nas eleições estadunidenses, isto é, diferente do que ocorre por aqui, o voto do eleitor não é dirigido diretamente ao candidato, mas serve para eleger os delegados do “Electoral College”, que no fim das contas representarão esses eleitores em seus estados e escolherão o novo ou a nova Presidente dos Estados Unidos.

Mas o que isso tem a ver com o objetivo da minha coluna no IREE? E o que tem a ver com o Brasil, em termos de Justiça e Segurança Pública?

Explico. Nas eleições de 2016 nos Estados Unidos, mais de 6 milhões de pessoas da população com idade para votar no país não puderam participar dos pleitos eleitorais em razão de condenações criminais. Isso representa quase 2,5% de toda população norte americana em idade para votar, de acordo com dados disponibilizados pela organização “The Sentencing Project”. Isso nos dá algumas pistas sobre o poder que a punição tem lá e aqui.

No Brasil, não é muito diferente. De acordo com o nosso ordenamento jurídico, as pessoas com condenação criminal transitada em julgado, sem possibilidade de recursos, perdem seu direito político ao voto, conforme consta do art. 15, III da Constituição da República.

Contudo, presos provisórios – cidadãos e cidadãs privados de liberdade no Brasil sem condenação transitada em julgado – poderiam exercer seu direito político ao voto, uma vez que não têm seu direito político cassado. Mas a realidade não funciona bem assim. Dos 237 mil presos provisórios que o Brasil tinha em 2018, apenas 7.394 puderam votar, o que equivale a menos de 4% do total de presos e presas provisórios. E mais, em alguns estados da federação nem sequer houve votação. São os casos de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Tocantins, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Globo.

Isso significa que a Justiça Eleitoral brasileira não conseguiu garantir o direito ao voto daqueles que estão presos provisoriamente e que, embora haja “somente” um adiantamento da punição, já tratamos essas pessoas como condenadas definitivas que devem perder mais e mais seus direitos.

As penas privativas de liberdade, tanto provisórias como definitivas, enquanto penas basilares das sociedades contemporâneas, não estão dando as respostas esperadas pelas nossas sociedades. Não há nenhum indício de que, em se aumentando o número de presos e presas, teremos mais segurança.

Ao contrário, o conhecimento produzido no seio das universidades tem dito justamente o contrário, que a prisão não recupera aqueles e aquelas que são considerados criminosos e que a privação de liberdade viola uma gama de direitos. Essas questões podem ser vistas tanto nos Estados Unidos como no Brasil, dois dos países que mais prendem pessoas em números absolutos e por taxa. Mas não é só isso.

Mais do que perder a liberdade ou certos direitos específicos, a punição é um obstáculo para a efetivação da própria democracia. Se, como falei no início, uma das maiores expressões da cidadania é o direito político ao voto, por que ainda não conseguimos tratar as pessoas presas como cidadãs?

Seria importante efetivar esse direito para que os presos e as presas falem por si, para que elejam candidatos que os representem, inclusive que publicizem a situação precária dos locais que privam as pessoas de liberdade.

Dizem que para conhecer uma sociedade de verdade é preciso conhecer suas prisões. Quando vamos fazer isso acontecer? Quando passaremos a enxergar pessoas presas como cidadãs?

 



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Mariana Chies

É socióloga e advogada. Pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), é coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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