No campo profissional, a maioria dos criadores artísticos se sustenta com os rendimentos que sua obra lhe proporciona. Uma minoria conta com algum vínculo empregatício e aceita abrir mão dos lucros de sua propriedade intelectual ou artística em troca de um salário compensador. Mas os conflitos entre os autores das obras e os agentes que a transformam em produto comercial e industrial existe há séculos. Essa situação se agravou com o advento da internet, que passou a instrumentalizar obras autorais para transformá-las em conteúdo de suas plataformas e oferecê-las aos consumidores.
Na antiguidade, pelo que se tem notícia, havia uma relativa noção de propriedade intelectual na Grécia, em Roma, na China e na Coreia. O plágio em Roma era condenado por lei, embora não houvesse uma legislação clara pela defesa dos direitos de propriedade. Somente com a invenção da tipografia e da imprensa por Gutemberg, no século XV, e com a possibilidade de obras literárias serem reproduzidas em larga escala, a questão dos direitos sobre a obra passou a ser motivo de preocupação.
Em 1710 foi criada na Inglaterra a primeira lei específica de proteção aos direitos, conhecida como lei da Rainha Ana, ou Copyright Act. Sendo que essa lei, voltada para o atendimento aos interesses dos editores, não fazia qualquer menção aos verdadeiros autores das produções intelectuais. Somente em 1791, durante a Revolução Francesa, foi aprovada a primeira lei de direito do autor, ao reconhecer seu direito sobre execução e representação. Dois anos depois, a França garantiu-lhe o direito exclusivo de reprodução, abrangendo também as obras musicais. Nos Estados Unidos, em 1790 foi promulgada a primeira lei federal que protegia livros, mapas e cartas marítimas.
À medida que várias outras nações criaram legislações voltadas para a proteção dos direitos do autor, foi acordado na Convenção de Berna, em 1886, o primeiro tratado multilateral sobre o assunto. Essa convenção que passou por várias revisões, somada à Convenção de Roma de 1961, ainda é o pacto que vigora nas políticas internacionais de reciprocidade.
No Brasil, a Constituição Federal da República de 1891, no art. 72, § 26, pela primeira vez protegeu o direito exclusivo de reprodução dos autores e a proteção aos herdeiros. E, em 1922, ratificamos a Convenção de Berna.
A primeira sociedade concebida com a finalidade de defender o direito autoral foi a SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em 1917, e, embora atendesse somente os autores teatrais, contou entre seus fundadores com a revolucionária compositora Chiquinha Gonzaga, uma vez que naquela época de musicais e revistas ela era parceira de vários dramaturgos. A partir de dissidências dentro da SBAT, formaram-se outras associações, porém voltadas para compositores.
Devido aos constantes conflitos entre as várias sociedades arrecadadoras de músicas às quais os autores estavam filiados, em 1973 foi instituído por lei o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais – ECAD. A partir de então, este passou a arrecadar os valores provenientes de execuções públicas e repassar a cada associação a parte que lhe cabia, assim como essas aos seus associados.
Finalmente em 1998 foi promulgada a lei 9.610/98, ainda em vigor, que em 2013 sofreu algumas alterações, em parte ainda não regulamentadas.
O que pretendo chamar atenção neste artigo é para o fato de que nenhuma dessas conquistas foi alcançada sem altas polêmicas e disputas, uma vez que envolviam não só os autores, mas indústrias fortes do mercado, exibidores e emissoras radiofônicas e televisivas. Também ressalto que cada país conta com uma legislação específica, sendo algumas bem mais progressistas e outras com um viés neoliberal.
Outro fator que alterou radicalmente a questão, a partir dos fins do século XX e do início do século XXI, foi o surgimento da internet com plataformas de cópias, distribuição e de venda de conteúdos culturais sem qualquer regulação. Antes que os autores e as indústrias de todo planeta tomassem qualquer atitude frente ao risco que corriam, já era inegável a proliferação de cópias “piratas” de filmes, discos e livros distribuídos em plataformas digitais de origens suspeitas.
Os oligopólios da internet do Vale do Silício se empenharam em campanhas internacionais pela liberação dos conteúdos gratuitamente, para que todos tivessem “acesso à cultura”. Criaram entidades sem fins lucrativos muito bem estruturadas, para estimular o uso de produções que não lhes pertenciam, com um ardiloso discurso em defesa de uma postura que insinuava ser anárquica ou de esquerda ao lançar a ideia do “copyleft”. Houve uma reação do mundo cultural que denunciava os interesses financeiros dessas empresas, ao cobrarem alto preço pelos “softwares” e “hardwares” e, para culminar, exibirem obras artísticas não autorizadas para vender espaço a seus anunciantes. Mas a repercussão popular das acusações era mínima, principalmente entre os jovens fascinados e cooptados pelo novo universo que lhes era apresentado.
Ao assumir o Ministério da Cultura me deparei com um quadro alarmante, por ter de atender centenas de queixas de autores, editores, produtores fonográficos e cinematográficos de obras, muitas vezes inéditas, que já estavam disponíveis para cópia nas redes, além dos CDs e DVDs “piratas” de péssima qualidade, vendidos por camelôs. Na contrapartida, havia uma dessas entidades financiadas pela Google, Microsoft e outras, o “Creative Commons”, então abrigado na FGV, que incentivava o uso gratuito de obras culturais. Essa empresa, sem nenhum processo legal, estava instalada na página oficial do Ministério, inclusive com seu logotipo/link que conduzia quem acessasse à entidade. Ao retirar a logo dessa entidade privada da página do MinC, tornei-me alvo de uma campanha extremamente agressiva e difamatória promovida por grupos de marqueteiros com seus “haters” e robôs, certos parlamentares e alguns jornalistas. Entre inúmeras calúnias, mesmo sem provas, me acusavam de receber pagamentos das gravadoras multinacionais e outras entidades.
Com a publicação e tradução de livros e matérias lançados originalmente nos Estados Unidos, o “Creative Commons” não demorou a ter revelado sua verdadeira finalidade, assim como a origem do financiamento que alavancava aquela campanha internacional pela flexibilização das leis de direitos autorais.
Durante minha gestão, houve um sem número de consultas às associações profissionais ligadas à literatura, audiovisual, música, artes cênicas, visuais e sociedade civil, além de seminários, buscando uma necessária atualização da Lei do Direito Autoral. No entanto, depois de tudo aprovado, o Anteprojeto foi envidado ao Planalto a fim de ser encaminhado ao Congresso para votação. Porém, sem maiores esclarecimentos, permaneceu arquivado na Casa Civil por quase um ano, ou até minha saída do Ministério.
No entanto, o enfrentamento mais forte contra a pressão desses oligopólios virtuais não só no Brasil, mas principalmente na Europa, Estados Unidos e países do Oriente partiu das indústrias da imprensa e culturais. Com a resistência de várias nações, não houve alternativa até que as partes firmassem acordos financeiros para o uso de conteúdos produzidos por terceiros. Em nosso país ainda há um enorme atraso em comparação com a maioria dos desenvolvidos ou em desenvolvimento, o que não é de se estranhar, tendo em vista o caos político que vimos enfrentando em todos os campos.
No governo atual, com as constantes ameaças que a Constituição Federal tem sofrido, o empecilho para um maior retrocesso é que, além de constar na própria Constituição como Cláusula Pétrea, o direito autoral faz parte de acordos internacionais aos quais o Brasil aderiu, como a Convenção de Berna, a Convenção de Roma, o ADPIC-Acordo Relativo aos Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, entre outros, que exigem reciprocidade entre os signatários, assegurando aos titulares estrangeiros a mesma proteção garantida aos nacionais.
Devido ao fato de todos esses pactos estarem atrelados à Organização Mundial do Comércio-OMC, que engloba centenas de interesses comerciais em todos os campos, mesmo que estacionado em relação a direitos autorais, este governo não tem alternativa a não ser respeitar o que foi alcançado em outras épocas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
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