Dinâmica das formas sociais: uma apresentação – IREE

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Dinâmica das formas sociais: uma apresentação

Alysson Leandro Mascaro

Alysson Leandro Mascaro
Jurista, filósofo e professor



As relações sociais são constituídas mediante formas sociais: as interações entre os sujeitos não são totalmente abertas e originais, mas moldadas por constructos sociais cuja coerção é imperativa. A dinâmica das relações sociais é, no limite, sempre determinada pelo modo de produção. Neste sentido, estabelecem-se, no capitalismo, formas sociais inexoráveis para a sociabilidade presente: forma-mercadoria, forma-valor, forma-dinheiro, extração de mais-valor do trabalho assalariado, propriedade privada, Estado, direito.

Em cada tempo histórico, as formas sociais são múltiplas e se apresentam articuladas, constituindo um conjunto coeso – mas não necessariamente coerente – e interagindo a partir do eixo de gravidade da determinação produtiva. O capitalismo é a sociedade da forma-mercadoria e seu motor é a acumulação. A partir desse núcleo, desdobram-se outras formas sociais nos campos econômico, político e jurídico que são congruentes ou simbióticas com as formas determinantes. Tais formas podem ser totalmente novas, surgidas com a própria forma-mercadoria e com a dinâmica da acumulação, ou reconfiguradas de outras formas sociais anteriormente já existentes antes do capitalismo.

Formas sociais surgem, interagem entre si e perecem. Pensar a dinâmica das formas sociais é compreender como as variadas relações sociais tomam forma, moldando inexoravelmente os vínculos que daí se estabelecem. Também é pensar como variadas formas sociais se articulam. E, ainda, como elas são transformadas, reconfiguradas ou, mesmo, superadas.

O capitalismo é o modo de produção que a tudo impõe uma forma de mercadoria. Terras, ferramentas, maquinários, tecnologias, matérias-primas, bens de consumo, todo esse conjunto é apropriado de modo privado e circula de modo contratual. O domínio direto das coisas, como havia no escravismo e no feudalismo, dá lugar ao domínio a partir da compra e venda. Aqui está a determinação de todas as relações de apropriação: a circulação só pode se fazer mediante vínculos jurídicos, contratuais. Para tanto, um poder político terceiro em relação a todos os agentes da produção, o Estado, garantirá as propriedades dos proprietários. Esse conjunto funda a materialidade mais profunda das relações sociais. Os que não têm capital não logram sobreviver na sociedade a não ser vendendo sua força de trabalho também de modo mercantil – o assalariado.

As formas do capitalismo surgem a partir da superação de variadas outras relações anteriores. Na Europa, isto se dá a partir dos escombros do feudalismo e de seu último regime político, o absolutismo. Não se pode considerar que o surgimento das formas sociais capitalistas tenha sido uma evolução linear daquelas do feudalismo. Não há uma teleologia na dinâmica das formas sociais. Os moldes determinantes aos vínculos sociais se estabelecem sem que sejam projeções ideais. A exploração do assalariado surgiu em combinação com fenômenos de acumulação primitiva, como a expulsão dos trabalhadores das terras comuns e sua chegada aos núcleos urbanos, onde então tiveram por caminho necessário de sobrevivência a venda de sua força de trabalho. O colonialismo por variadas regiões do mundo, como no continente americano, estabeleceu também condições sociais de acumulação primitiva para que as formas do capital se impusessem de modo determinante na história contemporânea.

Em Estado e forma política (Boitempo Editorial), proponho que o conjunto das formas sociais do capitalismo se articula sempre a partir da coerção da forma-mercadoria. Outras formas sociais, como a política estatal e a jurídica, são desdobradas da forma-mercadoria. Os mais avançados debates das últimas décadas pelo mundo chamam a esse processo de desdobramento de uma forma social em outras por derivação. Em sociedades capitalistas, tudo é mercadoria e, para tanto, todas as mercadorias se garantem não pelos seus possuidores, mas pelo Estado: forma mercantil deriva em forma política estatal. E, se tudo é mercadoria, elas se trocam e são apropriadas por sujeitos que, para os fins da troca, se equivalem como equivalem as mercadorias que trocam. Então, a mercadoria tem por dinâmica o contrato, a vontade presumida livre e autônoma, a igualdade formal entre os contratantes (a isonomia). A determinação pela forma mercantil faz com que seus portadores sejam equivalentes para os fins da troca contratual, de tal sorte que são sujeitos de direito: forma-mercadoria deriva em forma de subjetividade jurídica.

Minha tese é a de que há uma dinâmica entre as formas sociais derivadas que faz com que sua interação possa ser compreendida como uma derivação secundária. Chamo a isso de conformação de formas. A forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica são distintas, mas provindas ambas da mesma derivação, a partir da forma-mercadoria. Mas Estado e direito interagem: o Estado busca normatizar as relações jurídicas. Os interesses dos sujeitos de direito buscam limitar o Estado. O direito não é um produto do Estado nem o Estado é uma construção jurídica. Ambos são materialmente derivados das relações capitalistas, mas se conformam: implicam-se reciprocamente. Pode-se ver, com isso, que as formas sociais interagem estabelecendo tensões e conformações variadas.

Formas sociais são fenômenos determinantes da sociabilidade de um tempo histórico, mas não são eternas. O capitalismo porta crises. Suas formas são constantemente retrabalhadas e reconfiguradas a partir de tais crises. Além disso, revoluções, lutas, antagonismos e contradições os mais variados se apresentam em seu seio. Do entrecruzamento de crises e lutas sai a superação das formas sociais presentes. O capitalismo impõe as formas da sociabilidade presente, mas sua historicidade faz entender que futuramente outras formas de sociabilidade se manifestarão.



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Alysson Leandro Mascaro

Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).

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