Dialogar por uma nova tecnologia empresarial sem arrefecer a luta racial – IREE

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Dialogar por uma nova tecnologia empresarial sem arrefecer a luta racial

Yuri Silva

Yuri Silva
Jornalista



Formas de reparar as desigualdades raciais brasileiras começaram a ser listadas em uma série de debates calorosos que têm acontecido, em algumas camadas da opinião pública nacional, desde a morte de João Alberto Silveira Freitas, o homem negro assassinado pelos funcionários do Carrefour em ato de espancamento brutal.

Trata-se de um debate envolto em dor e revolta, sentimentos legítimos e compreensíveis pelo tamanho da barbárie. E, que talvez por isso, muitas vezes aponta caminhos polares, como se uma alternativa de construção fosse anuladora das demais – sem necessidade de assim ser, tratando-se de um tema tão central para a reconstrução do Brasil e de um projeto conectado com o povo dessa nação.

Fruto do racismo estrutural que organiza as mazelas sociais do país, o caso Beto Freitas precisa servir, ao invés da polaridade que insiste em se pronunciar, como lição para a construção de saídas dessa engrenagem de subjugação da população negra, manutenção da pobreza, da miséria e da fome, violência estatal por meio da segurança pública, retirada de direitos básicos e abandono social sistêmico.

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Os protestos que foram empreendidos após a repercussão do caso, embora criticados pela violência, provaram que a luta social negra e antirracista tem força e pode ser mobilizadora de massas que indiquem por onde escapar emergencialmente dessa chaga centenária que é o racismo. Ao tempo que ainda é necessário construir um diálogo, sem arrefecer essa luta, com aqueles que são capazes de aliar-se ao dilema civilizatório de incluir negros e negras no poder real.

Esse debate, embora startado a partir de um fato doloroso, tem o potencial de catapultar formas de interação entre lideranças negras e operadores econômicos dispostos a mudar a realidade. Juntar ativistas e lutadores sociais de variadas matizes com figuras que controlam as governanças privadas não somente nacionais, mas também e principalmente multinacionais, com o objetivo de criar percursos reais para levar ao topo dessas organizações tecnologias empresariais antirracistas, que combatam o cerne da desigualdade nacional.

Propor isso sem fazer cessar a revolta rueira vista no Brasil na semana do assassinato de Beto Freitas, em muito inspirada nas manifestações do Black Lives Matter nos Estados Unidos, é um desafio engenhoso. A opinião pública média e até mesmo aqueles e aquelas com maior capacidade de reflexão teimam em equiparar essas duas vias da luta por transformação como incompatíveis. Mas não são.

Ao contrário, os dois caminhos aqui expostos se complementam. São as movimentações das ruas – ainda que, no capitalismo, a violência seja ao mesmo tempo condenável pela moral e relativa diante daquilo a que ela responde – que impulsionam o debate moderado de construção de alternativas por dentro.

Os formatos para promover esse diálogo empresarial com comprometimento e eficiência prática são os mais diversos possíveis, mas dificilmente terá a mesma eficácia, capilaridade e penetração no tecido social se ocorrer envolvendo apenas uma certa entourage ou intelectualidade, de que cor/raça seja ela. Nessa tarefa, será preciso, como já apontamos no texto de estreia desta coluna, dialogar com quem produz tecnologia social negra, antirracista e inclusiva na ponta – figuras muitas vezes não lidas como parte pensante desse processo de reconstrução.

São ativistas organizados de forma tradicional e em formatos inovadores por meio de redes e fóruns criados na última década, empreendedores e pequenos e médios empresários, trabalhadores formais e informais, líderes comunitários, agentes culturais, ‘sivirologistas’ (especialistas na arte de ‘se virar’, como se diz nas periferias de Salvador) e muito mais gente de uma linhagem social que ajuda decisivamente na produção da riqueza nacional – aqueles que criam signos, símbolos, linguagens, sociabilidades, postos de trabalho, renda e que dão penetração social a qualquer projeto nacional que se reivindique transformador.

Vencida essa etapa, aí, sim, poderemos dizer que conectamos extremos indispensáveis para um mesmo devir, que é construir uma nação civilizada em que CEOs, CFOs, CMOs, CIOs e diversas outras posições possam ser ocupadas de fato por pessoas de cor, por gente com a mente descolonizada, capaz de entender a dimensão central dessa pauta. Até que, do topo à ponta, seja óbvio para todos que ninguém deve morrer espancado ou de qualquer jeito por causa da cor da pele.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Yuri Silva

É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.

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