Demos errado. Afinal, dizem que fomos feitos à imagem e semelhança de um Deus falho, cheio de dúvidas, que demorou a decidir seu rumo. Era um Deus vingativo, que matava criancinhas, jogava pragas, pregava trotes nos fieis, que testava seu poder mandando bobalhões matarem os filhos, até que resolveu mudar de vida. Se auto declarou um Deus de amor, de união, e nos deu seu filho. Veio com um discurso bacana, conciliador, quase perfeito, mas teve uma recaída, se arrependeu e se desforrou no Filho, que morreu morte horrível, torturado, assim como todos os seus discípulos – menos um, que morreu de velho – mas que já tinha sido todinho queimado. Ou seja, não mudou tanto assim. Mas a partir dali Ele sossegou, parou de se mostrar, e apenas discretamente matava um povo ali, terremotava uma terra acolá, mandava a peste, mas aí havia mudado de tática: culpava o diabo. O pobre, que nada mais era que um empregado fiel – que, vejam bem, CASTIGAVA os pecadores, quando pela lógica devia premiá-los, passou a ser perseguido, até hoje frequenta cultos neopentecostais apenas para ser achincalhado. Seu colega Lúcifer, que tentou nos dar luz, se ferrou todo (repetindo Prometeu, que se lascou ao nos dar o fogo) e virou capeta também. Esse Deus que nos vendem decididamente deu errado, como nós.
Desconfio que é Dele a culpa por obedecermos a ordens indecentes. Temos que nos submeter à lei, ok. Mas a lei não se submete à justiça, exemplos há aos borbotões:
Inventam a TV a cabo. Bacanérrima, canais interessantes, sem anúncios – afinal, pagamos para assisti-la. Criam uma lei que nos obriga a pagar direitinho, se quisermos usufruir de seus favores. Aí os donos, que não têm lei que os impeça, resolvem vender anúncios. Nada demais, ainda temos um conteúdo diferenciado. Então queremos assistir a um jogo de futebol. Pois não, eles fornecem. Mas por pouco tempo, então os donos decidem que podem cobrar uma taxa extra para assistirmos. Temos uma lei que nos obriga a pagar desde o início, mas essa lei não especifica o conteúdo. Então eles cobram e pagamos.
Paragrafemos para dar uma respirada. As diversas emissoras resolvem abrir novas frentes, então precisamos pagar um pouco a mais para ver os jogos que elas detêm. E, claro, todas com anúncios. Aí uma empresa compra diversas outras, e resolve vender à parte seus melhores jogos, mas dessa vez fora do cabo – é pelo streaming. TUDO dentro da lei, eles podem cobrar o que e quanto quiserem, mas nós não podemos fazer nada além de pagar ou então, não assistir.
Well, estamos falando de futebol, de diversão. Mas isso acontece com a saúde, com os transportes, com tudo. É o circo, mas as regras se aplicam ao pão. Isso se chama capitalismo. Criação de Deus, como clamam tantos, que o seguem religiosamente. Lembro de ouvir uma vizinha, quando eu era jovem, dizendo que uma outra vizinha havia “estragado a empregada”. Não entendi bem, até que me explicaram: havia pago a mais pelo serviço dela. Nenhuma fortuna, alguns trocados a mais, mas isso a estragaria para todo o sempre, pois ela iria querer que todos fizessem o mesmo. Imagine se empregadas pudessem ir à Disney???????? A classe média temente a Deus tem dessas coisas.
Até aqui só falei obviedades. E gostei muito, serei mais óbvio ainda.
O cidadão sonha em ter um teto para chamar de seu. Assina um documento com o banco, que a priori determina TODAS as condições. Ao comprador só cabe aceitar. Digamos que o cliente trabalhe no próprio banco, para termos uma simetria bonita. Ele perde o emprego, o banco achou mais barato trocá-lo por uma máquina de atendimento automático – novamente eles tinham um contrato determinado pelo banco, que a cada vez tinha menos obrigações. Para criar empregos tiraram direitos, para não “estragar” os empregados.
Bem, o cidadão ficou desempregado e o banco – que o desempregou – toma sua casa. O infeliz deixa de ser cidadão, não acha outro emprego, vai morar na rua. Seus ex-colegas da classe média torcem o nariz, gente de bem não mora na rua, alguma ele deve ter feito. O dono do banco dá entrevistas explicando como as coisas devem ser feitas. O cidadão não assiste, está na rua, não tem TV.
Ah, a obviedade não acabou ainda. O governo, amigo do banqueiro, tem diversos imóveis vazios. O dinheiro do governo é nosso, a gente é que deu pra ele. Forçado, mas deu. Aí vem uma criatura e resolve criar uma estrutura para ocupar esses imóveis, tirá-los dos ratos, reais e metafóricos. Atenção, esse ser não ocupa os imóveis que o banco roubou, não senhor! Ocupa os que o governo comprou com NOSSO dinheiro, essa criatura respeita as regras! E consegue colocar nosso ex-empregado do banco sob um teto, precário mas com dignidade. Aí é chamado de radical. Assusta a classe média, que ao fim e ao cabo ele defende! A mesma classe média que, lembrem, é temente a Deus, vota num não radical, um iluminado que defende a tortura, ataca índios, LGBTs, artistas, negros, desmata, faz o diabo – olha o coitado do diabo de novo entrando em fria! – e é o queridinho dos religiosos. Sim, ele coloca esse Deus que descrevi acima de tudo.
Um parêntese:
Enquanto escrevo, há uma polêmica encarniçada: Wagner Moura é flagrado comendo camarão num assentamento do MTST. Não era só ele, diga-se, e isso causa indignação na classe média: POBRES comendo camarão????? Nenhum desses tementes a Deus posta NADA quando pobres são obrigados a comer osso, ou quando Doria resolve distribuir ração. Curioso.
Pobres não podem comer camarão, correm o risco de serem estragados.
Mas temos um PS:
Não posso terminar esse quinzenário sem me referir a um evento único em nossa história. Mas antes sou obrigado a contar uma piada antiga.
Deu-se que houve um simpósio sobre sexo. O palestrante pediu que quem fizesse sexo todos os dias levantasse a mão. Algumas pessoas levantaram. De dois em dois dias, idem; de três em três, toda semana, todo mês, até que perguntou:
-Alguém aqui por acaso faz sexo uma vez por ano?
Nada.
-A cada dois ou três anos?
Um senhor levantou-se e começou a gritar:
-Eu! Sou eu! Olha eu aqui! Eu!!!!
-Mas o senhor faz tão pouco sexo, está tão eufórico por quê?
-Porque é hoje! É hoje! É hoje!!!!!
Essa história é a que me vem à cabeça quando nosso “presidente”, todo pimpão, eufórico, anunciou numa cerimônia oficial que deu “um bom dia especial” à primeira dama. Até seus puxa-sacos se espantam, e ele completa:
-Acreditem, se quiserem.
NUNCA na história desse país tivemos um presidente que comemorasse publicamente ter feito sexo. Estávamos cercados pela quinta série, agora chegamos à puberdade, do “transar e contar”.
Fiquei pensando na mulher vendo de perto, de baixo, aquela coisa babando, tendo esgares, arregalando os olhos num orgasmo disrítmico. Ela pode ter todos os defeitos do mundo, mas ninguém merece isso.
Ao fundo, Deus dá um risinho cruel.
Dedicado a Guilherme Boulos, um dos poucos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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