O professor Joel Rufino do Santos gostava de virar alguns marcos da História do Brasil pelo avesso, escovando-os à contrapelo, como propunha Walter Benjamin. Quando foi diretor de comunicação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Joel promoveu o desenforcamento de Tiradentes e tinha a ideia de descomemorar a Lei do Ventre Livre, projeto em que trabalhava quando morreu.
Ando pensando ultimamente no meu amigo Joel diante das comemorações previstas para o bicentenário da Independência do Brasil, em 2022. De cara confesso que não há patriotismo de ocasião que me faça celebrar acriticamente uma cena de independência que preservou a escravidão, o latifúndio e a monarquia. Neste sentido, sou mais de exaltar os caboclos do 2 de julho da Bahia e os guerreiros piauienses, maranhenses e cearenses da Batalha do Jenipapo. Falamos deles nas escolas sudestinas?

Joel Rufino – Divulgação
Numa espécie de calendário particular, costumo louvar o 23 de abril, dia de saravar São Jorge tomando cerveja e celebrar o nascimento de Pixinguinha, como um marco de Brasil original, insubmisso e – muito mais que resistente – inventivo. Distante das margens plácidas do Ipiranga e perto do canal do Mangue carioca, nosso São Pixinguinha se tornou, no fuzuê entre batuques africanos, contrapontos bachianos, sopros das europas e sonoridades de outras américas pretas (devidamente temperados com a pimenta daqui), um dos inventores do país em que acredito.
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Como escrevi há alguns anos, quem sacou esse Brasil oficial medonho que estamos vivenciando hoje – sem saber que estava sacando – foi Tancredi, o príncipe de Falconeri, na famosa sentença emitida no Leopardo, o livro da Lampedusa: é preciso que tudo mude para que as coisas permaneçam iguais.
Por aqui um português proclamou a independência, um marechal monarquista proclamou a República, oligarquias fizeram “revoluções” para derrubar oligarquias, ministros de ditaduras viraram entusiastas de redemocratizações e partidos costumam, vez por outra, deixar de ser governo porque querem exatamente continuar sendo governo.
Ao mesmo tempo, nas frestas desse Brasil oficial, há o Brasil que mora em um ponto de boiadeiro dos terreiros de encantaria: Boiadeiro laça o vento / na linha do laçador / se não tem vento eu invento / o vento que me laçou. Um país, como propõe a amarração do ponto, inventor de vida no vazio sincopando as linhas do tempo. Esse sim é um Brasil de discursos nem sempre verbalizados, burladores de cultas gramáticas, manifestado em corpos que transitam o tempo todo na negação da morte e na afirmação insistente da vida.
Há quem tenha ouvido o grito do Ipiranga às margens plácidas. Há quem escute o grito de aguerés, cabulas, muzenzas, barraventos, avamunhas, satós, ijexás, ibins e adarruns. Há quem tenha anunciado o Império do Brasil e aclamado o príncipe Dom Pedro. Há quem tenha anunciado o mestre condutor de Arôni, o Katendê dos bantos, e o juremá quilombola nas praias de Alhandra.
Não precisamos de hinos oficiais e cerimônias para lavar estátuas de libertadores que não trouxeram a liberdade. Precisamos construir a independência a cada dia, nas ruas, nas rimas, nas escolas, nas artes, nos corpos que transgridam esse empreendimento de mortandade e adequação da vida ao ditames do mercado que viceja no Brasil atual. Precisamos da sabedoria dos velhos cumbas, capazes de produzir encantarias libertadoras no fio da navalha do precário.
De minha parte, continuo buscando escutar as vozes, os discursos, os brados de independência presentes em cada tambor que toca para acordar o mundo: Navizala cavalga o avento, o agueré é meu manifesto, o cabula é minha escritura, o alujá é uma reflexão teórica sobre o fogaréu que se impõe como labareda de liberdade, às margens do rio imundo que corre perto da minha casa, na Zona Norte do Rio de Janeiro: um Maracanã de merda.
Sem espadas ao alto, sem o “já raiou a liberdade”, ainda insisto em colocar na água suja da aldeia, todos os dias, um barquinho imaginado em que escrevo apenas, levantando com bravura um palito depois de comer uma sacanagem no botequim mais próximo: Independência e Vida.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
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