Desatando um nó na administração pública – IREE

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Desatando um nó na administração pública

Wadih Damous

Wadih Damous
Advogado



A eficiência da máquina pública ocupa certamente um lugar especial no debate político do país. Atravessa mesas de bar, cadeiras de renomadas faculdades de Direito e é personagem importante na nossa história. Não há consenso sobre como aperfeiçoá-la, nem respostas fáceis, e ainda assim são notáveis os absurdos sugeridos no caminho desse debate. Entre os mais recentes, a proposta de se sucatear de vez toda a estrutura administrativa do país com a PEC 32 de 2020: o lema é destruir a Administração Pública para torná-la melhor.

E a contradição em termos, de tempos em tempos, ganha força, seduzindo congressistas e gestores a desistirem de pensar como melhorar a Administração Pública. É possível dinamizá-la, mas antes é preciso encontrar os pontos que a travam. Um acerto recente e que merece elogios foi a aprovação pela Câmara dos Deputados do texto base do Projeto de Lei nº 10.887 de 2018, que altera a lei de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992).

Em linhas gerais, as redações do projeto e da lei vigente são semelhantes. Definem de maneira aberta a figura do agente público como aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função (art. 2º da Lei e do Projeto de Lei). E estipulam punições para os atos de improbidade praticados contra quaisquer dos poderes dos entes federativos, incluídas as respectivas administrações diretas, indiretas e fundacionais, bem como entidade pública ou privada que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público ou para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% (cinquenta por cento).

A principal mudança sugerida é que as punições por improbidade se apliquem apenas aos agentes que agirem com dolo, ou seja, com consciência da ilicitude de seus atos e com a intenção de realizá-los mesmo assim. Enquanto a Lei vigente define em seu artigo 5º que ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano, o novo Projeto de Lei condiciona a existência de cada um dos atos específicos de improbidade (Capítulo II, seções I e II do PL) à prática de ato doloso ou à ação ou omissão dolosa. Embora pareça um detalhe técnico, a mudança possibilita que Administração Pública opere de maneira mais dinâmica e fluida, pois estabelece um critério mais seguro e estrito para a aplicação de punições.

A previsão da Lei em vigor de punições para quaisquer lesões ao patrimônio público decorrentes de culpa, ou seja, decorrentes da “simples” inobservância do dever objetivo de cuidado, deixa para o julgador uma margem grande de interpretação e subjetivismo acerca dos contornos dessa cautela. Como está, erros, equívocos e divergências de interpretação são perfeitamente puníveis, a depender do viés subjetivo e imperscrutável do julgador. Com isso, e sob a onda de “punitivismo” administrativo pela qual passa o país, insuflada notadamente pelos Ministérios Públicos país afora, gestores temem a tomada de decisões sensíveis e arriscadas; temem o exercício típico de suas funções.

Como observa, em contornos dramáticos, o professor Rodrigo Valga dos Santos: Nesse contexto, ao assumir a função pública e ordenar a despesa pública não se trata mais de quem poderá ser processado por improbidade, mas sim de quando isto ocorrerá (in: Direito Administrativo do Medo, p. 164, Ed. Revista dos Tribunais, 2021) .

Cotidianamente, decisões urgentes e importantes se colocam à frente dos gestores, mas, antes de qualquer resposta, é necessário reunir pareceres inúmeros, angariar apoios políticos, avaliar a futura cobertura midiática, entre outros tantos fatores. Enquanto isso, toda a estrutura administrativa deixa a desejar, desde as filas nos postos de saúde de bairro até os procedimentos licitatórios de interesse nacional.

Dada a extensão geográfica do Brasil e o tamanho de sua desigualdade, são necessários não apenas gestores inteligentes e inventivos, mas também uma estrutura administrativa destravada e suficientemente dinâmica para responder às diferentes realidades e necessidades do país. Embora os problemas sejam notórios e de conhecimento público nas mais variadas esferas da Administração, o medo das punições adia qualquer solução que se apresente, inviabilizando que se dê concretude ao princípio constitucional da eficiência (art. 37 da Constituição Federal).

Com a exigência de dolo para aplicação de punições, podem os gestores competentes cumprirem suas funções de maneira mais serena e no tempo que a dinâmica social exige. Efeitos imediatos da mudança poderão ser notados especialmente em empresas públicas como o BNDES e em sociedades de economia mista como a Petrobras, peças chave no desenvolvimento de tecnologias e no aquecimento da economia nacional, mas fortemente atravancadas por infindáveis rotinas de compliance, custos de consultoria externa e pelo medo constante. E com razão, uma vez que já não são poucas as Ações Civis Públicas instauradas contra executivos dessas agências, frequentemente carentes de justa causa. Especialmente relevante neste ponto é a redação dada ao §1º do artigo 11 do Projeto de Lei, que define: Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de interpretação razoável de lei, regulamento ou contrato.

Com efeito, o mencionado “punitivismo” administrativo, mimetizando o punitivismo jurídico-penal, tende à paralisação da dinâmica produtiva, posto que instaura uma ambiência de caça às bruxas e de incitação ao vigilantismo constante. Para além da óbvia burocratização de todas as práticas institucionais, ainda se facilita a eliminação seletiva de dissidentes, sem qualquer incremento de integridade e decência administrativa. A retomada do desenvolvimento nacional e a superação do atual ambiente de caça às bruxas encontram-se intimamente ligados e a exigência de dolo para o reconhecimento de improbidades administrativas representa um bom passo nessa direção. Trata-se de um pequeno nó a ser desfeito pelo Congresso.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Wadih Damous

É advogado. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB/RJ) e Deputado Federal pelo PT do Rio de Janeiro. É autor do livro "Medidas Provisórias no Brasil: origem, evolução e novo regime constitucional", em parceria com atual governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB).

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