No último mês viajei por tempos e espaços distintos, de São Paulo à Bahia e de volta a São Paulo. Foram viagens – derivas êxtimas – que abriram fendas e me fizeram pensar profundamente na dimensão do impossível e no diálogo entre arte e política.
Ir à Salvador foi como a Odisséia de Ulisses. Não propriamente uma viagem pelo mar, mas atravessar o oceano para chegar em casa.
O mar é o lugar do desconhecido, do imprevisível, do vago. Percorrer o infinito da história do Brasil e chegar ao Farol da Barra é encontrar o heterogêneo na sua voragem poética. Pierre Verger chegou no dia 5 de agosto de 1946, de navio. Seu encanto, perplexidade e fascinação estão nas suas fotografias e na decisão de viver em Salvador.
Tomada por espanto e encantamento, ao olhar aos barcos e navios ali aportados lembrei de Michel Foucault, para quem o navio é a heterotopia por excelência: nas civilizações sem barcos, os sonhos se esgotam. Em “Outros Espaços” ele afirma que o sujeito que navega vive no meio de uma infinita encruzilhada, pois é prisioneiro do mais livre espaço: o mar. Salvador está impregnada dessa forma marítima, com orlas e fortes que também condensam entradas e saídas, resistências e ruídos da existência.
O encontro com a história, na Bahia, pede uma suspensão do tempo na experiência, uma nova relação com a memória. No Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, um acervo riquíssimo; no Solar do Unhão, um conjunto arquitetônico do século 17, a presença de Lina Bo Bardi, que sonhou um Brasil imenso e múltiplo; na casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, um reduto do sensível com jardins cheios de vida e afeto e objetos imantados de uma beleza que se esparrama; na Basílica do Senhor do Bonfim, a convivência sincrética de crenças e presenças; na Casa do Benin, um belíssimo e extraordinário pedaço da África.
No centro histórico de Salvador encontrei também o Zumvi Arquivo Fotográfico, instituição idealizada em 1990 por Lázaro Roberto, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, três jovens negros das periferias de Salvador, que viveram em meio à ditadura militar e os percalços de serem negros na cidade mais negra fora do continente africano. O acervo fotográfico, com cerca de 30.000 negativos sobre a cultura afro-baiana – que ganhou uma sala na 35ª Bienal de São Paulo – é de fundamental importância como registro que sustenta a prática da documentação de atividades culturais e políticas e abriga a memória do que é por eles nomeado como “quilombo visual”, um arquivo que, antes de mais nada, é resistência, potência de vida e continuidade.
No Pelourinho encontrei ainda Arlete Soares que, em 1979, fundou a Editora Corrupio. Fotógrafa, dirigiu agência de publicidade, publicou revistas e livros e, dentre outros feitos, resgatou a obra de Pierre Verger. As diversas viagens feitas ao Benin ficaram intensamente marcadas na sua memória: na África, Arlete reconhecia Salvador e a Feira de São Joaquim, locais que fazem parte de sua vida: “Lá [no Benin] eu olhava para as pessoas e tinha a sensação de que as conhecia, que se pareciam com alguém. O jeito de falar, o gestual, a feira. Lá eu achava que estava aqui e aqui que eu estava lá”. Com um acervo de registros com mais de 2 mil fotos, Arlete conviveu, dentre muitas personalidades que ajudaram a construir as marcas da Bahia pelo mundo, com Mãe Stella de Oxóssi, Gilberto Gil, Carybé, Pierre Verger, Jorge Amado e Lina Bo Bardi.
Em encontros êxtimos – dentro e fora de tudo – visitei o grande artista Caetano Dias, autor de uma obra avassaladora que abriga a cosmologia e a história da Bahia. Com uma impressionante força crítica, é um artista que me comoveu logo à primeira vista e segue me atravessando de sentimentos. Em seu atêlie revivi o fluxo de um pensamento que há muito tempo me intriga: cabeças com traços africanos e mestiços, feitas de açúcar fundido, a partir de moldes – de silicone e gesso – de várias pessoas. Conheci esse trabalho há alguns anos e, desde então, o espanto e a possibilidade de pensar a brutalidade do Brasil colonial – um domínio feito de escravidão, sangue e sacrifícios – segue comigo.
De volta a São Paulo, estive na 35ª Bienal de São Paulo, cujo tema – Coreografias do Impossível – reflete também sobre questões essenciais da história do país e do mundo. Assim interrogam os curadores da Bienal: “Como corpos em movimento são capazes de coreografar o possível, dentro do impossível? Trata-se de um convite às imaginações radicais a respeito do desconhecido, ou mesmo do que se figura no marco das im/possibilidades. Tomamos o termo coreografia para realçar a prática de desenhar sequências de movimentos que atravessam o tempo e o espaço, criando várias e novas frações, formas, imagens e possibilidades, apesar de toda inviabilidade, de toda negação. Neste caso, nos interessam os ritmos, as ferramentas, as estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos, econômicos e jurídicos que saberes extradisciplinares são capazes de fomentar, e assim produzir a fuga, a recusa e seus exercícios poéticos”.
Umas das referências fundamentais para esta Bienal é o pensamento de Leda Maria Martins que, em “Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela”, diz de uma coreografia de retornos, em que dançar é inscrever no tempo uma experiência corporificada ou um saber encorpado onde tempo e memória se refletem. Nas suas palavras, “o corpo dança o tempo”.
E é meu próprio corpo – entre a Bahia e o mundo esboçado e tensionado nas questões cruciais abertas pela Bienal – que também dança e sente um caminho escrito, não sem dor, mas a partir de tantas vozes e tantos corpos e pode, agora, ser revisto.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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