Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi contista, dramaturga, romancista, aderecista, cantora, produtora musical e exerceu muitos outros ofícios da arte por desejo de realizar-se no mundo cultural que tanto amava. Em busca de respostas existenciais, fez muito, de tudo um pouco, configurando-se numa grande e completa multiartista brasileira, de profundidade comovente.
A imprensa nacional, o establishment social e a elite cultural não permitiram, contudo, que conhecêssemos Carolina como ela era realmente. Ficamos com o imaginário e a estática somente da escritora de diários, favelada e melancólica – faceta e estética relevantes da obra e da vida da escritora mineira, mas longe de ser a única possível.
A revelação da grandiosidade da obra de Carolina e suas camadas está na exposição ‘Um Brasil para os brasileiros’, no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista (São Paulo).
A mostra, que apresenta novos documentos e informações sobre a autora, além de intervenções artísticas que interpretam sua trajetória à luz de elementos atuais da cultura negra e periférica, nos leva a refletir sobre a ousadia dos brancos na condução das nossas histórias, o resquício escravista da ‘tutela’ e de certo ‘paternalismo’.
A curadoria apresenta-nos, em resumo, uma agência branca de apagamento, invisibilização e redução de poder simbólico, que foi empreendida sobre Carolina ao longo da história. Pior: nos deparamos com a presunção de uma branquitude que se sente autorizada a narrar o percurso do nosso povo, mesmo sem permissão, e a narrar como eles querem e acham melhor.
Carolina Maria de Jesus foi alvo constante deste crime contra a memória. Entre tantos absurdos, teve o título de um dos seus livros, romance originalmente batizado de ‘A Felizarda’, alterado para ‘Pedaços da Fome’, a fim de explorar o tema que acabou percorrendo a vida toda da autora: a pobreza. O livro que dá nome à exposição também sofreu alterações, de acréscimos a supressões de trechos inteiros, além do título, que acabou sendo publicado tanto na França quanto no Brasil como ‘Diário de Bitita’.
Os dois episódios ilustram bem o ‘modus operandi’ do olhar limitante do racismo. O mesmo olhar que limitou, de todas as formas possíveis, a escritora ao lugar de intérprete da miséria, ofuscando sua capacidade filosófica e de reflexão sobre a vida, a existência e as dores humanas de uma forma muito mais ampla. E reduzindo praticamente a pó sua faceta alegre e de grande interação social.
Descobrimos na exposição do IMS que até mesmo imagens de Carolina feliz, sorrindo e com o cabelo à mostra, sem o tradicional lenço branco que nos acostumamos a ver, além do seu belíssimo CD de sambas gravado na RCA-Victor e as roupas que ela mesma produziu para os carnavais nos quais desfilou, toda essa riqueza foi privada de nós até então.
Em um dos vídeos exibidos no segundo andar da mostra, Conceição Evaristo, escritora e doutora em Literatura, aponta bem a engenhosidade do racismo, ao reparar que, fosse Clarice Lispector a dizer ou escrever algumas coisas de autoria de Carolina, essas produções seriam consideradas geniais e a autora consagrada como uma grande pensadora de profundidade filosófica.
Evaristo, nessa fala, cita a mineira que viveu tantos dias na favela do Canindé a catar papelão para vender e sustentar os filhos: “Na vida catei muitas coisas, só não consegui catar ainda a felicidade”, enunciou Carolina, comprovando-se uma legítima existencialista.
Talvez sua complexidade não fosse digerível para uma sociedade vazia, acostumada à planície, à superficialidade. A mesma elite que a reduziu a uma só, quando Carolina era muitas, é a elite cultural e social que flexibiliza a escravidão em livros e artigos de jornais, sob a desculpa da liberdade de expressão, como fazem Risérios e Narlochs.
São os mesmos que, ao não compreenderem as nuances do sofisticado sistema escravista que estruturou as relações sociais e econômicas no Brasil, tentam cunhar termos irresponsáveis como ‘Sinhás Pretas’ para se referir a negras escravizadas ou alforriadas, algumas fundadoras dos principais terreiros de candomblé da Bahia, que supostamente acumulavam escravos e joias de luxo – narrativa que a historiografia já comprovou sobre alguns templos religiosos de matriz africana, no entanto ainda carece de estudo em outros casos e, portanto, não pode ser alvo de generalização.
O cerne da questão não é, contudo, de forma alguma, a informação que nos é apresentada pelo livro de Antônio Risério e foi incensada pelo artigo de Leandro Narloch na Folha, fatos que encontram respaldo e justificativa no engenhoso tecido de relações sociais daquele momento histórico – embora representem, sim, como disse Joaquim Nabuco e complementou João José Reis, na obra de ambos, cumplicidade de alguns subjugados com a escravidão, a certa altura da história.
O centro do debate está, em vez de nesses elementos, na utilização de informações como essas para amenizar o horror da barbárie que foi a escravidão nas Américas, conceber juízos de valor descontextualizados sobre a população negra que teve sua humanidade aviltada e, pior, distorcer conceitos e defesas históricas do ativismo negro anticapitalista, como aqueles que indicam o papel estruturante do racismo e do patriarcado na construção do capitalismo brasileiro.
É deplorável a ousadia de uma dupla de brancos e a sensação de permissão que os move ao querer interpretar, aos seus belos prazeres, a história de um povo que foi oprimido pelo povo deles num genocídio mundial histórico. É como se, mesmo passada a escravidão oficial e o massacre do povo negro, eles ainda acreditassem que podem mandar nas nossas vidas, de questões simples à própria história que os outros poderão saber sobre nós no futuro. É como se os alemães resolvessem narrar a história dos judeus, alvo do nazismo.
A mesma branquitude que reduziu Carolina Maria de Jesus a uma pobre coitada autora de diários, lhe tirando tudo que a enriquecia como escritora e multiartista brasileira, é a branquitude que tenta fingir que a escravidão não foi o crime da raça branca. Azar o deles, e sorte a nossa, que os tempos mudaram e nada ficará sem respostas ou reparos públicos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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