Quem sabe a polícia do Rio de Janeiro, ao planejar a invasão da favela do Jacarezinho em 6 de maio desse ano, não tenha cogitado de fazê-lo no dia 13 de maio, data em que a Princesa Isabel decretou o fim da escravidão no Brasil?
Quem sabe não tenha recuado para evitar que a operação policial não fosse considerada como provocação ao povo negro?
Especulações à parte, se as autoridades policiais tivessem escolhido o 13 de maio estariam replicando, em forma de provocação, um sentimento generalizado no meio de certas classes médias e médias altas: olhar as favelas de baixo para cima com terror, desconfiança e repulsa.
Ali é o território da bandidagem e da doença. Dos que ameaçam a segurança “pública” e a propriedade privada. Lugar das “classes perigosas”.
Esse sentimento nasce em desdobramento do 13 de maio. A abolição – na sua dimensão jurídico-formal – desestabilizou a estrutura socioeconômica do Império, toda ela calcada na escravidão. Essa constatação explica o título do presente artigo.
A nascente República instaurada mediante golpe de Estado no ano seguinte teve de responder à indagação: o que fazer com os negros libertos? Integrá-los à sociedade e conferir-lhes cidadania jamais foi opção.
Juremir Machado da Silva traz um precioso exemplo de qual foi a opção seguida pelos mandatários da época em face do fim da escravidão, transcrevendo parte de um artigo publicado no Diário do Maranhão, em 14 de maio de 1888:
Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho, entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adotada na França, recolhendo a estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos. Assim se praticou nos Estados Unidos depois da emancipação (in: Raízes do Conservadorismo Brasileiro, ed. Civilização Brasileira, 2018).
O tráfico negreiro trouxe para o Brasil mais de 6 milhões de africanos. Os negros eram a maioria da população brasileira no final do século XIX e início do XX.
Era preciso embranquecer a população. Incentivou-se a vinda de imigrantes europeus para substituir a mão de obra escravizada.
O racismo ganha corpo como visão de Brasil. A escravidão – que por aqui durou mais de 350 anos – na verdade é o traço distintivo e explicativo da sociedade brasileira.
O Rio de Janeiro do início do século passado escolheu adotar o processo de embelezamento urbano. Negros libertos, prostitutas, pobres e marginalizados em geral deveriam procurar o seu lugar. Teve início aí o processo de gentrificação da cidade antes do advento do termo.
Nesse rol cabiam os soldados da batalha de Canudos; os revoltosos da vacina; os imigrantes pobres; os despejados dos cortiços, como o famoso “Cabeça de Porco”, cujo despejo de mais de 4.000 moradores serviu de inspiração para Aluísio Azevedo escrever o seu principal romance “O Cortiço”.
A geografia do Rio de Janeiro facilitava o processo de invisibilização desse contingente de deserdados.
O morro da Favella (assim com dois “L”) é apontado como a primeira favela carioca. Favella era o fruto de uma planta, a faveleira, muito comum no Arraial de Canudos. Os soldados, após a matança, sem receber os seus soldos e sem ter para onde ir, foram autorizados a ocupar o hoje morro da Providência, popularizado com o nome da planta baiana.
Desde então, essa e outras ocupações das encostas cariocas passaram a ser estigmatizadas, como informa a Professora Licia Valadares:
Já em 1900 o Jornal do Brasil denunciava estar o morro “infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias”. Esta é também a visão expressa por um delegado da polícia, segundo nos informa Bretas (1997, p. 75): “Se bem que não haja famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do exército, não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em todo o morro um só bico de gás.” (in: Rev. Brasileira de Ciências Sociais, vol.15 no.44 São Paulo Outubro. 2000).
Como se vê, foi um lento, consistente e inexorável processo de formação das consciências inaugurado pelas classes dominantes brasileiras e seus ideólogos e operadores.
Portanto, as forças policiais, quando invadem o morro e fazem incursões como a que matou 28 pessoas no Jacarezinho, se sentem imbuídas de e legitimadas por uma missão “saneadora” e “higienizadora”.
As favelas são vistas como território inimigo de acordo com os postulados da insana guerra às drogas – imposta a nós pelos Estados Unidos – que pautam a política de segurança pública dos sucessivos governos do estado do Rio de Janeiro das últimas décadas, com a honrosa exceção de Leonel Brizola.
O Anuário de Segurança Pública deste ano revelou o crescimento de 4% nas mortes violentas intencionais no ano de 2020. Dessas, 78% dos casos ocorreram com emprego de arma de fogo. Das vítimas, 76,2% são negras, 54,3% são jovens e 91,3% são do sexo masculino. No âmbito da violência doméstica, 74,7% das vítimas de feminicídio possuem entre 18 e 44 anos e 61,8% são negras. Esses dados demonstram o racismo estrutural arraigado no Brasil. Todo dia há um massacre da população jovem e negra.
A chacina do Jacarezinho não fugiu ao padrão tradicional dessas operações policiais no Rio de Janeiro. O que difere é o contexto em que foi realizada: sob a vigência de uma determinação do Supremo Tribunal Federal que as proíbe enquanto durar a pandemia, salvo situações excepcionais.
Não havia qualquer excepcionalidade. A ordem de invasão desrespeitou abertamente a decisão do Pleno do Supremo, o que, em condições normais, sujeitaria o governador do estado a um processo de impeachment.
No Rio de Janeiro, temos a mistura do cenário nacional marcado pela degeneração dos princípios do Estado Democrático de Direito – que, em linhas gerais, nunca prevaleceram nas favelas – com uma cultura policial baseada em política de extermínio, com os fundamentos históricos que aponto nesse texto. Tal mistura nos autoriza a prever que mais chacinas e operações desse tipo acontecerão.
Para conter o morticínio patrocinado pelo Estado é preciso estabelecer estruturas de controle, instituir e tornar públicos os parâmetros de uso da força e protocolos de ação, como já faz a polícia de Minneapolis, por força de exigências da comunidade após o assassinato de George Floyd, defende com propriedade a professora Jacqueline Muniz (Folha de São Paulo, 7/5/21).
Isso só será possível com uma verdadeira “revolução cultural” que expurgue da mentalidade da polícia, dos governantes e do sistema de justiça em geral o racismo e o perigosismo. Que revogue o direito penal do inimigo, que elege como alvo os supostos criminosos por sua condição social e de raça e não os crimes que possam ter cometido.
E a condição indispensável para isso é derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo – também incrustado no Palácio Guanabara – nas ruas e nas urnas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Wadih Damous
É advogado. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB/RJ) e Deputado Federal pelo PT do Rio de Janeiro. É autor do livro "Medidas Provisórias no Brasil: origem, evolução e novo regime constitucional", em parceria com atual governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB).
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