Darcy Ribeiro e as perguntas que nunca fiz – IREE

Análises e Editorial

Darcy Ribeiro e as perguntas que nunca fiz

Por Eric Nepomuceno* 

Darcy Ribeiro morreu há vinte e cinco anos, no dia 17 de fevereiro de 1997. Viveu até o último instante desejando o que sempre quis: vida, mais vida.

Ao longo de seus últimos 22 anos nossa convivência foi intensa. Eu o chamava de “vice-pai”, em alusão à relação que ele manteve, quando da criação da Universidade de Brasília, com meu pai, o físico Lauro Xavier Nepomuceno, pioneiro do estudo da acústica no Brasil e quem trouxe para cá o ultrassom.

Esta é a minha memória de um homem íntegro, de um visionário, de um construtor do futuro.

Alguém que, neste Brasil de hoje, faz mais falta que nunca.

 

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele costumava cochilar, mas posso assegurar que não. Mesmo quando breves, seus sonos seriam profundos.

Porque profundos e infinitos em sua ousadia foram seus sonhos. E não se sonha grande em cochilos leves.

Darcy não sonhou pequeno, nunca. E também não se limitou a sonhar um mundo melhor, mais justo e possível. Não ficou nos sonhos, jamais. Foi lá, fazer com que seus sonhos virassem realidade.

Para o dicionário Houaiss, fazimento quer dizer ato ou efeito de fazer; feitura, fazedura.

Para Darcy Ribeiro, era isso e muito mais: uma espécie de eixo de vida, um norte orientando cada passo, e quanto mais ousado esse passo, melhor.

Não parava, nunca. Por isso a vida dele não teve outono: foi uma floração perene, até o último instante.

Foi à vida, foi ao mundo, para tornar sonhos realidade.

Conseguiu, algumas vezes. Fracassou em outras.

Disse, muitas e muitas vezes, que sentia mais orgulho de ter sido derrotado lutando pelo que lutou, do que jamais conseguiria sentir se estivesse ao lado dos que o derrotaram.

 

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele gostava de

contas redondas.

Volta e meia penso nisso, quando recordo que por poucos meses ele não chegou aos 75 anos de idade. Nasceu em outubro, morreu em fevereiro.

Viveu 74 anos, três meses e catorze dias. Quase nove meses separaram Darcy dos 75 anos completos. Curioso, isso: quase nove meses. Quase uma gestação.

Pois o que mais me impressiona é a quantidade de coisas que Darcy fez e foi, e aí me parece curto demais o tempo que lhe foi dado para viver.

 

Nesses quase 75 anos de vida ele foi ministro da Educação, ministro-chefe da Casa Civil, vice-governador do Rio de Janeiro, secretário da Cultura do Rio de Janeiro, secretário de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, reitor da Universidade Nacional de Brasília – que, aliás, criou, ao lado de seu amigo Anísio Teixeira e reunindo o que de melhor havia no mundo acadêmico e intelectual daquele tempo.

 

Foi, até o fim, senador da República. E ele, que se dizia e se sabia eterno, conseguiu ainda a proeza de morrer imortal – porque também teve tempo de sacudir o chão da Academia Brasileira de Letras.

 

Escreveu romances, ensaios antropológicos, ensaios sobre educação, análises críticas da história do Brasil e da América Latina.

Só de artigos, conferências, palestras e ensaios que nunca foram reunidos em livro, há mais de uma centena.

Seus livros de antropologia, principalmente O processo civilizatório, As Américas e a civilização, e acima de todos O dilema da América Latina fizeram de Darcy Ribeiro, ao lado de Celso Furtado, o intelectual brasileiro mais respeitado e influente na América Latina da segunda metade do Século XX. Seus livros formaram gerações de intelectuais e acadêmicos do continente.

Também escreveu histórias infantis e poemas eróticos. Foi indigenista, antropólogo, agitador, romancista, conspirador, mas gostava mesmo é de ser chamado de educador – coisa, aliás, que também foi.

Morreu senador. Darcy Ribeiro adorava ser senador da República.

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro qual o fascínio que provocava nele o linho branco. Aquele mesmo linho que meu avô José Augusto usava e dizia ter mandado trazer do Panamá, linho 120.

Lembro que no dia em que foi eleito senador Darcy Ribeiro vestiu um terno branco, de linho formidável, e ficou andando pela sala do seu apartamento de Copacabana, vendo o mar e falando sem parar.

Estava descalço.

Não consigo tirar da memória essa imagem: Darcy, em casa, em qualquer uma das muitas casas que teve pela vida e pelo mundo, sempre descalço.

Dizia que era por causa do seu sangue índio. Até hoje desconfio que na verdade ele andava descalço para sentir os pés no chão.

Chico Buarque ainda não havia escrito o verso absoluto que diz ‘é preciso pôr o chão nos pés’.

Para mim, aquele andar descalço de Darcy de um lado a outro era a antecipação da imagem que Chico criaria anos depois, sem saber disso: colocar o chão nos pés.

 

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele se considerava um intelectual peculiar. Não perguntei nem precisei perguntar: evidentemente Darcy era peculiar em tudo que fez, e sabia disso.

Jamais se recolheu aos claustros acadêmicos ou da burocracia oficial para de lá ficar olhando a vida ao longe, a realidade transformada em números e estatísticas, a vida como objeto de análise fria, calculada, distante, indolor.

Não: Darcy Ribeiro mergulhou fundo, participou de todas as maneiras que pôde da vida política deste país.

E quando foi impedido de continuar participando aqui, engajou-se nos países por onde passou o exílio. No Uruguai, no Chile de Salvador Allende, no Peru, ao lado do general Juan Velasco Alvarado, dois presidentes comprometidos com profundas mudanças sociais em seus países, e também nas suas andanças pela Costa Rica, pelo México, pela Venezuela, Darcy Ribeiro não sossegou um só instante.

Não, não era homem de cochilos e sonos leves: sonhava grande.

Jamais foi homem de ficar na superfície. Acreditava no poder transformador da realidade. Acreditava na indignação.

Seu compromisso básico, o mais perene, chamava-se Brasil. Quis mudar a educação, criando escolas de qualidade para todos; quis salvar os índios, preservando suas culturas e protegendo suas terras; quis mudar a estrutura social que beneficia alguns à custa de todos os outros.

Perdeu.

Num de seus textos mais contundentes, lido quando ele recebeu o título de doutor honoris causa na Sorbonne, em 1978 – ele foi, aliás, o primeiro brasileiro a receber a honraria, e na época não gozava das glórias de nenhum cargo público ou das benesses das embaixadas: ao contrário, estava exilado – Darcy Ribeiro falou dessas perdas, dessas derrotas. Disse ele:

 

“Fracassei como antropólogo no propósito mais generoso que me propus: salvar os índios do Brasil. Sim, simplesmente salvá-los.

Fracassei também na realização da minha principal meta como ministro da Educação: a de pôr em marcha um programa educacional que permitisse escolarizar todas as crianças brasileiras.

Fracassei, por igual, nos dois objetivos maiores que me propus como político e como homem de governo: realizar a reforma agrária e pôr sob controle do Estado o capital estrangeiro de caráter mais aventureiro e imoral.”

Terminou dizendo que ‘esses fracassos da minha vida inteira’ eram também ‘os únicos orgulhos que tenho’.

 

Anos mais tarde, um dos intelectuais latino-americanos mais próximos a ele, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, escreveu:

‘Estes são os seus fracassos. Estas são as suas dignidades’.

 

No mundo destes tempos de culto ao individualismo, em que a ânsia de ter supera o sonho de ser, em que a generosidade é restrita às coisas e não se refere às pessoas, mais que nunca as dignidades de Darcy Ribeiro são necessárias. Tão desesperadamente necessárias.

 

Nunca perguntei a Darcy quais eram suas urgências,

suas emergências, além de viver até a última gota, é claro.

Porque Darcy era um homem de urgências permanentes, de emergências que se alongavam no tempo. Tinham raízes profundas. Eram perenes. Uma espécie de emergência contínua, num renovar incessante.

Havia, em sua maneira de olhar e pensar o Brasil, a América Latina e o mundo, um eixo nítido: o fato de não estarmos condenados a ser o que somos, a certeza de que não somos vítimas de um destino malvado, e sim de um sistema perverso.

O trabalho de Darcy Ribeiro – os sonhos que ele quis transformar em realidade – estava e está destinado a soprar o fogo dessa brasa adormecida, a incendiar a mansidão dos conformados, a provar que somos sempre e acima de tudo um povo viável, digno de uma outra – e nova – realidade, feita por nós.

Para ele, o Brasil era um problema que só teria e só terá solução a partir de nós mesmos, de nossa capacidade de impulsionar e consolidar mudanças.

 

6.

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele tinha idéia, por menor que fosse, do impacto que algumas das imagens que guardaria dele para sempre provocaram em mim.

Convivemos lado a lado, não importando as distâncias, ao longo de 22 anos. E desse tempo todo, lembro agora de duas imagens, e de pelo menos uma certeza.

 

A certeza:

Foi o único amigo que nasceu no mesmo ano de meu pai e conseguiu ser, até o fim, mais jovem que meu filho.

Dele, ouvi certa vez uma frase que mudou minha vida e ficou abrigada na minha alma.

Disse Darcy: Na América Latina, só temos duas saídas; ser resignados, ou ser indignados. E eu não vou me resignar nunca.

 

Das muitíssimas imagens que guardo dele, cito aqui uma, que mais que imagem foi lição de vida:

 

Alta noite do dia 31 de dezembro de 1995, e Darcy Ribeiro estava sentado na varanda do seu apartamento na avenida Atlântica.

Olhava a multidão espalhada pela praia e pelo asfalto e pelas calçadas da avenida.

Das alturas daquele quinto andar, ele contemplava tudo com olhos de piloto atento, percorrendo as pessoas, as ondas do mar oceano, as embarcações iluminadas. Darcy e seus olhos de passarinho.

Quando faltava pouco para a virada do ano – a penúltima que ele iria ver – duas amigas chegaram na varanda, aproximaram-se da cadeira em que ele estava sentado e colocaram no chão um grande balde prateado, um desses baldes que são usados para esfriar garrafas de vinho.

No balde havia água do mar e areia da praia que elas tinham ido buscar.

Quando viu o foguetório da meia-noite e do ano que se iniciava, ele mergulhou os pés no balde.

Darcy, naquela noite, adoentado – e muito – não podia ir até o mar. Pois deu um jeito de trazer o mar até ele. Até seus pés descalços.

De pôr o mar, a areia, o chão nos pés.

Assim quero me lembrar dele para sempre. Também assim.

 

A segunda imagem:

 

Certo fim de tarde de um sábado, poucos meses antes de nos deixar para sempre, Darcy saiu do escritório de Oscar Niemeyer, naquela mesma avenida Atlântica.

Vestia um terno branco, de linho formidável, e foi caminhando devagar pela calçada até o automóvel que esperava por ele.

Do mar, vinha uma brisa cálida.

Visto lá do alto, o paletó branco esvoaçando, caminhando devagar, Darcy Ribeiro parecia um veleiro desafiando os ventos, rumo a um futuro – um porto – que só ele poderia adivinhar.

 

Guardo essa imagem e a certeza de que o porto, aquele porto, é preciso agora, mais do que nunca, merecê-lo.

Porque desta vez Darcy não perdeu, não foi derrotado.

Mudou de rumo.

E aonde quer que esteja, continua como sempre: indignado. E descalço.

 

 

* Eric Nepomuceno é escritor, tradutor, contista premiado e autor de livros de não-ficção. Já traduziu para o português obras de importantes escritores da América Latina, como Julio Cortázar, Eduardo Galeano e Gabriel Garcia Márquez.

Este texto foi lido originalmente no Seminário “100 anos de Darcy Ribeiro: A utopia é aqui”.



Por Equipe IREE

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