CPI do MST: De onde vem o conflito? – IREE

Análises e Editorial

CPI do MST: De onde vem o conflito?

Por Samantha Maia 

A CPI do MST, iniciada no dia 17 de maio de 2023, a quinta enfrentada pelo movimento desde 2003, tem sido marcada por discussões acaloradas, ofensas e microfone cortado. Entre os objetivos da CPI, comandada pela oposição ao governo, estão identificar organizadores e financiadores do MST, que por sua vez acusa a comissão de ser uma tentativa de criminalizar o movimento e conquistar um palanque político.

Os embates, no entanto, escancaram conflitos que vão além da disputa entre governo petista e oposição bolsonarista. As disputas no campo remontam o período colonial, e para entender os interesses envolvidos é fundamental olhar para o contexto histórico da política de terras no Brasil.

A concentração de terras nas mãos de poucos proprietários é uma marca do campo brasileiro. Segundo o último Censo Agropecuário, com dados de 2017, apenas 1% das propriedades agrícolas ocupa quase metade da área rural do país. Pequenos proprietários detêm só 2,3% da terra e o Índice de Gini do setor é de 0,867. Quanto mais próximo de 1, mais desigual.

Histórico da concentração de terras no Brasil

Um momento-chave da opção pelo modelo de grandes propriedades no Brasil foi a assinatura da Lei de Terras pelo imperador dom Pedro II em 1850. A lei veio para cobrir um vácuo legal sobre a apropriação da zona rural que vinha desde o fim das sesmarias, com a Independência, em 1822. Nesse período, terras públicas foram ocupadas por uma diversidade de pessoas, de camponeses pobres que viviam da subsistência a poderosos latifundiários.

A Lei de Terras proibiu a ocupação de áreas públicas, que passariam a ser vendidas, e anistiou todos que estavam ilegais até então mediante pagamento de taxas, algo como a regularização fundiária atualmente. Vem dessa época também o termo grilagem, pois a necessidade de comprovar que a ocupação da terra havia se iniciado antes de 1850 desencadeou a falsificação de documentos, que eram colocados em gavetas com grilos para os papéis parecerem antigos.

Mas isso era para quem tinha recursos e influência. Para os pequenos camponeses, as taxas cobradas foram proibitivas. Ao ficarem sem terra, passaram a servir de mão de obra para as grandes propriedades. Estava em curso também o fim da escravidão, processo que aumentaria o número de pessoas sem terra no campo.

Aliás, foi do movimento abolicionista que veio uma das primeiras propostas de reforma agrária do Brasil. André Rebouças, engenheiro negro, propôs um modelo de repartição das terras nacionais a partir da criação de um imposto sobre fazendas improdutivas e a distribuição das terras para ex-escravizados. Sabemos que não ganhou apoio.

Documentos mostram que senadores e deputados, em sua maioria senhores de terra, alegavam que era natural que as terras fossem para os latifundiários, pois pequenos camponeses não teriam força para expulsar os indígenas e produzir. A violência contra os povos originários era institucionalizada. Com a Proclamação da República, a elite agrária passa a comandar a política nacional, por meio das oligarquias.

A luta por Reforma Agrária

A Constituição Federal de 1934 reconheceu a necessidade da reforma agrária para resolver o problema da concentração de terras e promover a justiça social. Diferente da Constituição de 1891, na qual a propriedade era concebida como algo absoluto e inviolável, na Carta de 1934, o direito à propriedade foi condicionado aos interesses e direitos coletivos.

Já a Constituição de 1946 ampliou as possibilidades para desapropriação de terras, e previu a “desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro”, tendo em vista a finalidade de promover “a justa distribuição da propriedade, com iguais oportunidades para todos”.

É na década de 1940 que surgem as Ligas Camponesas, que organizaram milhares de trabalhadores rurais pela reforma agrária no Brasil, além de outros movimentos como a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER). A reforma agrária passa a ser cada vez mais objeto de confrontação aberta e direta, unindo partidos políticos, sindicatos e movimentos populares. A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) é criada em 1963.

Nos anos 1960, a luta de trabalhadores do campo por terra conquista apoio do governo de João Goulart, que integra a reforma agrária nas chamadas Reformas de Base. No dia 13 de março de 1964, o Presidente Goulart anunciou no “Comício das Reformas” para um público de 200 mil pessoas a assinatura do decreto 53.700, que declarava de interesse social para fins de reforma agrária as grandes propriedades rurais às margens de rodovias e ferrovias federais e de obras públicas.

Essa e outras medidas enviadas ao Congresso Nacional sobre a reforma agrária geraram reações que viriam a desencadear no Golpe de 1964. O governo militar barra essas medidas, mas cria o Estatuto da Terra, que disciplina as relações fundiárias no Brasil, estabelece mecanismos de política de desenvolvimento agrícola e mantém a promessa de reforma agrária, firmando a noção de função social da propriedade. Na prática, porém, não houve avanço na reforma agrária, e os incentivos públicos foram direcionados às grandes propriedades agrícolas, o que permitiu a modernização de latifúndios e o avanço da fronteira agrícola para áreas florestais e de terras indígenas.

O que é a Reforma Agrária

Segundo o Estatuto da Terra, a Reforma Agrária é um “conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. 

Em 1988, a reforma agrária é incorporada na Constituição Federal, que reforça a ideia de função social da terra e determina que: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. Por função social entende-se que a propriedade deve atender a níveis satisfatórios de produtividade, utilização adequada dos recursos naturais, observância da legislação trabalhista.

Cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) realizar o processo de reforma agrária, que é iniciado com a identificação e a análise de valor das terras irregulares, em alguns casos áreas ocupadas por movimentos sociais.

A desapropriação é feita mediante indenização dos proprietários. A terra, que passa a ser propriedade do Estado, é então destinada a famílias cuja seleção é organizada pelo INCRA. O assentado recebe a concessão para produzir, além de acesso a programas de auxílio ao desenvolvimento da propriedade, como o crédito para implantação do lote e construção de habitação.

Cabe ao governo também implementar obras de infraestrutura no entorno da propriedade, como estradas e escolas, e facilitar acesso ao crédito bancário aos assentados. A fase final é a concessão do título da terra às famílias, que é feito quando se entende que é possível manter a propriedade sem os auxílios do Estado. Após a titulação definitiva, a terra não pode ser vendida pelo prazo de dez anos.

Mas e o MST?

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nasceu em 1984, no Paraná, como uma organização social que luta pela Reforma Agrária no Brasil. Atualmente o MST representa 450 mil famílias assentadas, aproximadamente 40% do total de assentados no Brasil, e outras 100 mil em acampamentos à espera de terras.

Sua atuação se dá principalmente por ocupações de terras para pressionar o poder público a garantir a função social da propriedade. O grupo levanta acampamentos nos locais identificados como possíveis de serem destinados à reforma agrária e exige vistoria do INCRA. O processo pode demorar, e a situação pode desencadear conflitos entre os acampados e os proprietários da terra.

O movimento é acusado de invadir áreas produtivas e atentar contra a propriedade privada. Em livro, o presidente da CPI do MST,  deputado Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) acusa o movimento de “terrorista” e “grupo criminoso travestido de movimento social”, além de reclamar que “invasões de terra viraram rotina”.

O MST defende sua atuação a partir do fato de que a reforma agrária está na Constituição, e de que a democratização do campo é importante para o combate à pobreza, para a produção de alimentos e a preservação do meio ambiente.

Desde a redemocratização, há tentativas de se iniciar uma política de reordenamento agrário no Brasil, mas a reforma agrária nunca foi implementada. As políticas de assentamento têm sido paliativas, para conter conflitos agrários, e sem alterar a estrutura do campo. A considerar pela CPI em andamento, não é de se esperar que a reforma agrária nem soluções para os problemas de desigualdade no campo tenham força no Congresso Nacional.  



Por Samantha Maia

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