O Brasil está numa situação tão absurda que vivemos entre um presidente que faz campanha pelo vírus e alguns governadores e prefeitos que só se resumem a dizer “se puder, fique em casa”.
“Se puder fique em casa”: é muito pouco, é o mínimo. Pra dizer isso, basta bom senso. Mas não se vence uma pandemia só com bom senso. Quem tem a caneta precisa usá-la para tomar medidas concretas em favor da vida das pessoas e do emprego. Não só pra escrever palavras de autoajuda.
Depois de tentativas fracassadas de modificação no rodízio de carros e de antecipar feriados, a Prefeitura e o Governo de São Paulo decidiram pela reabertura do comércio e de shoppings em pleno pico da pandemia. O custo humano poderá ser ainda mais devastador. Mas, vejamos, qual outra alternativa? O que a maior cidade do Brasil poderia fazer de diferente diante da crise sanitária e econômica?
Primeiro precisamos apontar o quanto a pandemia escancarou a desigualdade: no mundo, no Brasil e em São Paulo. Enquanto os mais ricos e a classe média enfrentam a quarentena com conforto, milhares de paulistanos ainda esperam com desespero os R$600 do auxílio emergencial que segue “em análise”.
Com os filhos sem aula, sem computador em casa para estudar e com a internet do celular cada vez pior. Com dívidas se acumulando, vendo familiares perderem o emprego. Com parentes e vizinhos adoecendo, sem vaga em hospitais, com medo de ser o próximo a adoecer.
Os 20 bairros com maior mortalidade por COVID-19 na cidade de São Paulo estão na periferia. Quem mora nesses bairros tem 10 vezes mais chance de morrer se contrair o vírus. No mesmo sentido, a chance de morrer por coronavírus é 62% maior em São Paulo para os negros em relação aos brancos.
Não, amigos, o vírus não é democrático. Estamos todos no mesmo barco? Bem, lembremos do naufrágio do Titanic: 60% dos passageiros da primeira classe sobreviveram e apenas 25% da terceira.
A região metropolitana de São Paulo já tem 13 hospitais lotados, que não podiam receber mais nenhum paciente. A taxa de ocupação dos leitos em UTIs está acima de 90%. Para se ter uma ideia do tamanho da pandemia na cidade, o maior estudo epidemiológico nacional sobre o coronavírus – coordenado pela Universidade Federal de Pelotas – estimou que São Paulo tinha, em 20 de maio, 380 mil pessoas infectadas. É mais do que a quantidade de brasileiros que tiveram teste positivo.
Cada realidade precisa de uma intervenção diferente. Não adianta tratar uma metrópole com milhões de habitantes da mesma forma que um vilarejo, um município com 20, 30 mil habitantes. O Brasil esconde muitos Brasis. E o termômetro da nossa capacidade de controle da doença vai ser justamente as regiões mais populosas do país. Não vamos diminuir a taxa de transmissão apenas com campanhas de usar máscara, lavar as mãos e decretando feriadão.
Mas não basta o diagnóstico e a crítica. Proponho cinco medidas emergenciais que a cidade de São Paulo deveria tomar para salvar vidas, proteger as periferias e mitigar a crise social e econômica:
1 – Programa municipal de testagem em massa: São Paulo tem oito mil agentes comunitários atuando nas equipes de saúde da família. Cada um é responsável em média por 750 pessoas. Isso são pelo menos 6 milhões de pessoas. Se houvesse um programa municipal de testes, esses agentes poderiam atuar para realizar testes, identificar focos de transmissão e reforçar o isolamento social. As maiores cidades do mundo têm mapas atualizados bairro-a-bairro de onde são os focos, os clusters da doença. Sem esse monitoramento, estamos combatendo um vírus que vai permanecer invisível.
2 – Requisição de leitos privados: São Paulo tem pelo menos 4.200 leitos privados, que não sofrem no momento com superlotação. O número de pacientes internados em hospitais municipais na última semana não passava de 2000. Muitos hospitais privados não divulgam suas taxas de ocupação e há imensa confusão nos números. Como gerenciar um sistema à beira do colapso, se a prefeitura não sabe exatamente quantas vagas tem disponível, onde e quais os hospitais particulares que podem receber uma vaga? É preciso ter gerenciamento centralizado, via SUS. O município tem prerrogativa e dever de fazer a requisição.
3 – Hospitais de campanha nas periferias: Mais uma vez, a desigualdade. 60% dos leitos de UTI na cidade estão concentradas em três distritos centrais (Sé, Vila Mariana e Pinheiros). Enquanto isso há sete distritos periféricos sem nenhum leito. O epicentro da doença está na periferia. Mas dos 4 hospitais de campanha, 3 estão co centro. É urgente a montagem de leitos de campanha nas regiões mais afetadas e menos assistidas. Além disso, a Prefeitura não pode manter hospitais fechados ou em funcionamento parcial durante a pandemia, caso do Sorocabana, na Lapa, e do hospital da Brasilândia.
4 – Política de acolhimento emergencial: Temos 1.400 escolas municipais, grande parte delas fechadas. Essas escolas podiam estar sendo utilizadas para isolamento de pessoas com suspeita de COVID-19 que moram em casas superlotadas e não tem um cômodo específico para ficar isolados. Sem falar na requisição da rede hoteleira, hoje às moscas pela crise. São Paulo precisa acolher os sem-teto: são 25 mil pessoas em situação de rua e temos 40 mil vagas de hotéis desocupadas na cidade. Abrigar os sem-teto na rede hoteleira, além do objetivo principal de salvar vidas, ainda evita a falência em série dos pequenos hotéis da cidade. O mesmo acolhimento provisório pode ser feito para mulheres vítimas de violência diante da explosão de casos pela quarentena. Várias cidades do mundo já o fizeram: Londres, Los Angeles, Prada, Sidney, Paris e, no Brasil, Niterói, Florianópolis e Macapá. São Paulo está atrasada.
5 – Apoio social e econômico: Milhões de paulistanos não fizeram o isolamento por falta de alternativa, não de vontade. Quarentena não é pra quem quer, é pra quem pode. Sem falar, na demolidora recessão que virá no pós-pandemia. Para evitar uma convulsão social, o Poder Público tem responsabilidades de apoio aos mais vulneráveis. Uma primeira medida é criar a Renda Básica SP, garantindo o complemento de meio salário mínimo para os desempregados e trabalhadores informais da cidade, complementando o auxílio emergencial federal, insuficiente para o custo de vida paulistano. Outra medida é assegurar o cartão alimentação para todos os alunos da rede municipal de ensino, já que a merenda escolar era a principal refeição de muitos deles. E, por fim, um plano de ajuda aos pequenos comerciantes e micro e pequenos empresários, com adiamento de cobrança tributária e uma política de indenização pelo fechamento, aos moldes do que foi feito na Bélgica. É a forma de evitar uma quebradeira em série dos setores mais atingidos pela crise.
Ou seja, não basta ao prefeito da maior e mais rica cidade brasileira dizer “fique em casa”. É preciso medidas concretas, voltadas para os mais atingidos pela crise. São Paulo não pode ficar refém de mais passos em falso e da falta de iniciativa. Porque enquanto isso a periferia sangra.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Boulos
É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.