O artigo “As convenções constitucionais em tempos de fragmentação” foi publicado originalmente em espanhol no jornal argentino Perfil.
Uma Constituição para um povo de demônios expulso do inferno: as convenções constitucionais em tempos de fragmentação
Sobre a dificuldade de construir significado coletivo em uma sociedade polarizada com dissensos manufaturados, deficiência cognitiva e uma esfera pública privatizada.
Por Lucas Arrimada*
Professor de Direito Constitucional e Estudos Críticos do Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina)
“O problema do estabelecimento de um Estado sempre tem solução, por mais estranho que possa parecer, mesmo quando se trata de um povo de demônios; requer apenas que tenham entendimento”… “’Trata-se de ordenar uma vida em uma constituição, de tal forma que, mesmo que seus sentimentos íntimos sejam opostos e hostis um ao outro, eles sejam contidos, e o resultado público da conduta desses seres seja exatamente o mesmo que se não tivessem maus instintos”, Immanuel Kant, Sobre a paz perpétua (1795).
1. Projetar ideais futuros sem prestar atenção aos medos do passado e às angústias sociais do presente. Diante dos múltiplos desafios e divergências que ocorrem simultaneamente em nossos dias, muitas vezes é sugerido repetidamente que uma convenção constitucional poderia permitir a construção de consensos que em nossa prática cotidiana parecem estar em extinção.
Em geral, nas últimas décadas, apelou-se à ideia de reforma constitucional como refundação nacional e, em particular, o Chile neste exato momento realizará um referendo sobre seu novo projeto de Constituição. No entanto, a situação hoje talvez seja diferente das convenções constitucionais do século 19 ou mesmo de uma década, uma vez que as comunidades estão atomizadas, perdendo coesão e identidade coletiva.
A linguagem parece perder sua eficácia como ferramenta de comunicação social, a realidade não é mais compartilhada e a sociedade se divide em círculos fechados, entre novas segregações, câmaras de eco e tribos identitárias. Para acompanhar esses processos, devemos observar que o Estado de Direito, a democracia em nível comparativo e a sempre frágil ordem internacional parecem estar, nas mais diversas latitudes, em processo de mutação e colapso gradual. O projeto histórico do Estado de Direito moderno está em estado de reconfiguração acompanhando a lenta morte das democracias e as liberdades já abolidas pelos monopólios tecnológicos em seus campos de distração em que todos passamos cultivando o vazio existencial enquanto os horizontes escurecem.
As sociedades precisam tanto de um diagnóstico do presente quanto de uma ideia de futuro. Recuperar as possibilidades dos horizontes de amanhã requer atenção e paciência em contextos de dispersão e ansiedade. Muitos querem propor um futuro impossível e improvável sem ouvir, assistir com calma, sem analisar cuidadosamente a imagem dos tempos sombrios em que vivemos, as sombras que falam em confusão, o barulho e os gritos de uma sociedade que precisa urgentemente de mais contenção e ouvir profundamente quais são as expectativas de um amanhã; uma sociedade que, em qualquer caso, deve estar preparada para construção laboriosa, paciente, disciplinada e coletiva em tempos de distração social e crises sobrepostas.
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Pensar nas liberdades individuais e no livre arbítrio em tempos de condicionamento digital é uma armadilha eficaz, uma miragem perigosa. O desafio do ideal democrático é a complexa ação de coordenar institucionalmente o diálogo de todas as autonomias individuais na ação de construção da soberania política em um extenso território para dar forma ao autogoverno coletivo. Ainda mais quando se quer construir a vontade democrática em uma sociedade com fortes desigualdades, oligarquias que abrirão guerras judiciais para disputar resultados – mesmo constitucionais -, bloquear processos de implementação de reformas enquanto o tempo permite consolidar posições de fato que se tornarão direitos adquiridos e a elite, mesmo bem-intencionada, se distrai com autovalidação e ego inflado de sua retórica vazia, enquanto a inflação de commodities consome tudo e alimenta o descontentamento estrutural.
A negação cínica da realidade dos “progressivismos” – vários deles populismos reacionários e autodestrutivos cheios de voluntarismo tolo e realismo mágico – fomenta forças autocráticas em gestação. Como no passado recente nos EUA, Reino Unido e Brasil, a necessidade alienante das forças – supostamente – progressistas de apontar a virtude, impor a justiça social e o politicamente correto superficial, estão colaborando ativamente na construção das bases sociais de processos autoritários e auto lesivos que poderá ser visto no futuro.
O próprio sistema econômico capitalista parece devorado por suas próprias forças monopolistas e feudais. Não há lugar para o desenvolvimento da liberdade, competição, mercado e inovação nos sistemas econômicos atuais. Nem mesmo os Estados podem competir com os monopólios tecnológicos e em breve serão gradualmente substituídos por eles, exceto talvez em suas funções repressivas e policiais que as plataformas já cumprem em parte. Sob a repetição de frases e propagandas do “livre mercado”, consolidaram-se oligarquias financeiras, corporações medievais e parasitas de forças sociais que extraem dados pessoais de plataformas de marketing em formas de redes sociais que ingenuamente habitamos enquanto nos manipulam de forma crua e constante.
As corporações regulam seu próprio ecossistema jurídico e fazem com que os constitucionalistas usem a razão pública para fins privados, para justificar a violação de verdadeiros textos constitucionais liberais que retoricamente – nunca na prática – promovem mercados, concorrência, direitos e liberdades que se tornam exceções em um mundo cada vez mais corporativista, de forças concentradas que constroem a vigilância e o controle social horizontal.
Tempos de fragmentação
Em contextos de fragmentação da sociedade devido a processos de dissensos manufaturados por plataformas publicitárias e extração de informações íntimas, pensar no desenvolvimento da autonomia individual é contra-intuitivo. As emoções negativas se espalham de forma viral e os níveis de desinformação facilitam a criação de inimigos por meio de pânicos morais e indignação social.
Tanto a liberdade individual quanto a coletiva são condicionadas por esferas digitais com excesso de informação e formas de dominação por superestimulação. A tudo isso, os problemas subclínicos de saúde mental e declínio cognitivo estão cada vez mais difundidos. Neste contexto, querer remodelar o barco em alto mar no seio de uma tempestade radical da humanidade, a tempestade perfeita, só nos pode trazer resultados trágicos ou épicos na costa.
Ansiedade coletiva
2. A constituição da ansiedade coletiva: da euforia à depressão. O desenho constitucional é muitas vezes uma questão de minorias intensas e maiorias silenciosas. O governo local e a vida social rural talvez permitam outro tipo de participação política que a sociedade industrial, hoje em declínio, não admite senão por meio de ficções perfumadas como republicanas, democráticas, participativas e deliberativas, práticas facilmente desnaturadas e manipuladas. Apesar disso, as maiorias, geralmente expectantes, podem entrar em cena de maneiras surpreendentes, típicas da soberania do político. As dificuldades da ação coletiva fazem com que as minorias organizadas tenham uma constante primazia operacional contra as maiorias e seu direito ao autogoverno. Quando as maiorias são dominadas pela distração, as oligarquias constroem suas novas soberanias.
A linguagem do direito pode ser mais clara e estendida, mas a extensão é sempre retórica, hipócrita, limitada, nunca realmente universal. São as regras dos governos de massa, hoje atomizados, divididos, fragmentados, multiculturais e fragilizados em seus laços sociais. A hipocrisia era essencial no projeto de lei, em nossos tempos em processo de decomposição. Prometer direitos no horizonte que já sabemos que não poderemos ter. O que há de novo nesses contextos é que a hipocrisia está se tornando mais fraca, disfuncional, e o cinismo de diferentes setores, corporações, atores, está se tornando reinante, o eixo central das políticas globais, locais e até interpessoais.
O que fazer quando a hipocrisia legal está reduzindo seu poder simbólico e é o cinismo da guerra o que está se espalhando? O que fazer quando a ação cínica ilegal abre processos de violência aberta visando saquear recursos para forjar mais fortalezas para ataques cíclicos que destruirão o coletivo e desmembrarão o Estado-Nação em facções identitárias de naturezas feudais?
As oligarquias não pararão na acumulação violenta de meios e espaços, não só por sua ambição cega, mas também porque suas decisões de reprodução são feitas hoje por algoritmos programados com razão instrumental aprimorada. A inteligência artificial, perfeita executora das oligarquias financeiras, é aquela a quem está sendo delegada a decisão de maximizar os lucros. Elas serão as próximas forças dialéticas a quebrar as correntes contra seus mestres de programação. A ação pública do coletivo, hoje entre a sedação e a castração, é a que terá que resistir à opressão para, mediando muita paciência e temperança, reconstruir o que é público hoje em processo de desarmamento e roubo.
Plebiscitos?
3. Os plebiscitos nem sempre são instrumentos democráticos. Plebiscitar a rejeição do passado é muito mais fácil do que plebiscitar a construção de cada direito em um futuro incerto e impossível de controlar. O passado é sempre o inimigo fácil de um povo sofredor, porque é diretamente responsável pelas deficiências e males do presente. É fácil rejeitar os autocratas, ditadores e maus governos da direita ou da esquerda de ontem.
O voto punitivo cumpre essa função nas eleições e nos plebiscitos. Muitas vezes permite negar a responsabilidade das próprias pessoas, a miopia da ação coletiva e seu papel na legitimação dos processos do passado recente. Nem sempre permite construir futuro. O plebiscito perfuma com democracia processos que nem sempre são democráticos.
O plebiscito não é uma ferramenta edificante, não é um convite ao diálogo, talvez seja seu forte fechamento. Pode destruir, pode dividir, pode sufocar a construção de pontes e diálogos que acontecem no longo prazo; um diálogo contínuo da sociedade consigo mesma, para além de um tudo ou nada, um sim a tudo ou um não rotundo, outro processo de soma zero que deixa claramente derrotados alienados com feridas emocionais. Os referendos populares são processos com limites para a construção da educação democrática e do diálogo fundamentado em contextos onde, emocionalmente, tudo o que não faz parte do meu ambiente de autovalidação é uma ameaça, onde todos falam para espelhos.
Temos que nos sentir emocionalmente confortáveis na comunidade para poder dialogar, não ser assediados, não nos sentir mal com nossas condições aleatórias ou identidades escolhidas, temos que nos sentir bem-vindas e bem-vindos para nos expressar abertamente e cometer erros. As sociedades não estão vivendo o melhor momento para abraçar a diversidade de liberdades se expressando, cada um busca lugares seguros e pensa com cuidado no que diz e para quem o diz.
Entre culturas de anulação, processos de humilhação e destruição de reputação, falsas campanhas de informação, a sociedade está tribalizada e em guerra consigo mesma. Se eu tenho medo de ser punido socialmente, no trabalho ou academicamente, eu escolho ficar em silêncio no debate público. Depois votarei secretamente no referendo em que sou obrigado a votar e talvez não queira, e me expressarei como a maioria dos espectadores se expressa, com apatia, vaias ou aplausos. Todos os processos mais emocionais do que democráticos e racionais. Votando sim ou não, não são dadas muitas razões. As maiorias silenciosas se expressam melhor nas urnas diante das diferentes espirais de silêncio em lugar de confrontar as intensas minorias que as incendiarão nos supostos “debates públicos”, a maioria deles realmente limitados, treinados e teatrais. O palco teatral em que é debatido é mais forte do que o próprio debate. É assim que funcionam as espirais de silêncio que no longo prazo geram resultados eleitorais e processos sociais que não deveriam ser tão surpreendentes.
Como concordar em direitos quando ninguém sabe o que é verdade e as ferramentas que nos permitem construir comunidades parecem escassas? Será possível construir sentido coletivo em um contexto onde a linguagem está em disputa e uso constante e cínico? É possível escrever textos de comum acordo em momentos de permanente sobreposição de guerras culturais e políticas identitárias que incentivam a segmentação de realidades não compartilhadas? Como tranquilizar as expectativas e os pânicos circulares quando a manipulação das emoções e a fabricação do dissenso é feita com capacidade de tocar os medos mais íntimos que o big data permite dissecar com precisão atômica?
Os processos Constituintes são pensados como solução para as crises sociais, contra as heranças das gerações passadas e a invisibilidade histórica. Antes de enfrentar esses processos complexos, é necessário conter as emoções negativas de uma sociedade com níveis de medos, ódios e ansiedades autodestrutivos. Mas deve-se lembrar que, se for perdido, isso traz consequências para os fatores de poder.
Derrotas coletivas constroem atores corporativos vitoriosos que acumulam poder de fato e com o tempo legalizarão ou constitucionalizarão suas capacidades de fato. Talvez haja décadas pela frente, que virão com descontentamento social, estupidez estrutural e restrições econômicas, antes que o consenso político e constitucional possa ser construído sem violência emocional.
Primeiro devemos regenerar as ferramentas que nos permitem ter uma linguagem comum e uma realidade compartilhada. Enquanto reinar a desorientação e as dissonâncias cognitivas, provavelmente viveremos no absurdo de bolhas e condomínios fechados divididos em câmaras de eco autovalidadas. Além disso, o prólogo dessa reconstrução provavelmente será de décadas muito difíceis, com muita confusão, onde você terá que lamentar as oportunidades perdidas e as derrotas futuras.
As convenções constitucionais invisíveis
4. As forças corporativas da morte e do necroconstitucionalismo. As convenções constitucionais invisíveis. Que forças estão construindo o futuro sem nosso consentimento ou de nossos representantes políticos e comunitários? As convenções constituintes ou as corporações tecnológicas com mais poder e projeção sobre nossas vidas atuais ou futuras do que os Estados-Nação em retirada? Essas corporações hegemônicas são forças vitais ou forças que podem nos levar a um futuro distópico sem direitos de privacidade, em sociedades de vigilância não liberais, colapsos ambientais e decisões estratégicas delegadas a inteligências artificiais sem controle republicano? Os poderes em conflito – geralmente invisibilizados pelas convenções constitucionais – são uma força vital da sociedade ou são uma força de opressão da vida, uma força de morte que engole recursos de exploração, dominação e depredação do mundo da vida?
Minha hipótese – algo óbvio diante de minhas perguntas retóricas – é que eles são forças de morte e que ao administrar seus próprios sistemas jurídicos paralelos estamos diante de um processo de formação de um necroconstitucionalismo: a construção de um novo direito constitucional produto dos novos pais fundadores sem nenhuma legitimidade política, mas com soberania em corporações tecnológicas monopolistas que já habitamos e nos habitam intimamente. Nessas convenções constitucionais que se arrastam há décadas, não tivemos ou temos nem voz, nem voto, nem futuro.
Com a Constituição moderna morta como produto fictício da soberania política oligárquica ou democraticamente construída – uma exceção histórica à regra do constitucionalismo autoritário e oligárquico -, nasce o necroconstitucionalismo. Os constitucionalismos autoritários e oligárquicos sempre foram administradores da vida e da morte, da dominação e da desigualdade, mas diante dos complexos processos da sociedade industrial e de incorporação das massas à política, foram sendo reformados lentamente, principalmente no século XX.
Cinquenta anos atrás, aquela primavera de expansão econômica, capacidades estatais e direitos fundamentais terminou, fazendo a transição para um outono constitucional. O constitucionalismo tardio, agora lentamente em colapso, está se preparando para um inverno que parece ser longo e extremamente rigoroso. A relação entre a Constituição e as forças da morte não é nova.
A Constituição sempre foi uma ameaça aos direitos humanos e à prática democrática. Com seus estados de exceção, leis marciais, intervenções federais, decretos-leis, DNUs e delegações, suspensão de garantias, tribunais oligárquicos violando a constituição para proteger corporações incestuosas que também são oligárquicas, concentração presidencial de poder, desenhos de jogos políticos assimétricos a favor de uns poucos, a violação dos direitos de propriedade da maioria em favor do capital financeiro, o saque do patrimônio coletivo e o endividamento especulativo como forma de condicionar as capacidades das gerações futuras, a tortura no sistema prisional como prática cotidiana, a autonomia das forças de segurança, etc., as práticas constitucionais criadas por uma minoria para proteger os privilégios de uns poucos devem ser analisadas com rigor. As oligarquias constitucionais e seus defensores patológicos – juristas que se apresentam como democratas e dialogistas, mas trabalham com a razão pública para fins privados, para justificar a concentração econômica das corporações, a racionalização das emoções negativas, a construção de guerras judiciais e inimigos políticos – sempre serão um perigo para os direitos humanos e as instituições democráticas de uma sociedade cada vez mais empobrecida, distraída e desorientada. Em meio a esse quadro, o constitucionalismo e a própria ideia de constituição fazem parte do problema e parte da solução dos desafios coletivos.
Enquanto os governos estão em processo de enfraquecimento estrutural, os jogos de soma zero dos sistemas políticos presidencialistas geram dinâmicas autodestrutivas que só terminarão em uma epopeia eleitoral anterior a uma nova frustração com a mudança de gestão ou em processos de autoritarismo competitivo igualmente fragilizados. Nesse contexto, muitos querem pensar mundos constitucionais sem confrontar fatores de poder, sem identificar os colapsos superpostos em formação e sem aceitar o declínio da cultura de paz social que Kant projetava, mediada pelas instituições republicanas e pelo mesmo direito hoje em reconstrução silenciosa pelas soberanias corporativas dos novos pais fundadores do nosso futuro feudal.
* Lucas Arrimada é Professor de Direito Constitucional e Estudos Críticos do Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina)
Por Equipe IREE
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