Este curto conto da vida real é uma página, no máximo duas, de verdades alcalinas, não seja a própria vida a história efêmera de elementos conjugados, minérios, metais, flúores e latidos estridentes de cães atropelados na marginal do rio Tietê, que vão agonizar nesse entroncamento da periferia norte de São Paulo, Pirituba, onde também há beleza retratável, de forma mais sutil porém. Ali, ao acaso, enquanto visitava um joalheiro para ajustar minha aliança à circunferência do dedo anelar esquerdo, de casado, por indicação de uma amiga, que enfim encontrou um ourives confiável num mundo tão desconfiado de si mesmo, ali, tomei conhecimento da história do luso-brasileiro autenticamente romântico Ricardo Reis.
Para ser sintético, porque a vida não permite digressões despropositadas, vou ao que interessa e adianto logo que ele era batalhador e gostava de trabalhar de jeans e descamisado, esquálido, com um chapéu Panamá torto na cabeça. Por muitos anos, maltratou-se como chapa, ou ajudante de caminhoneiro, à margem da rodovia, até adquirir meios de comprar uma caminhonete com a qual passou a fazer seus próprios carretos, levando ferro velho entre as fundições e fabriquetas que povoam todos os subúrbios. Infelizmente para ele, o fato de possuir seis dedos na mão direita, polidactilia, uma alteração genética que virou motivo de piada entre amigos e inimigos, que na estrada se encontra de tudo, esse fato não ajudou em nada para o melhor exercício do ofício de motorista.
A música no toca-fitas foi sempre a mesma, Carinhoso, Pixinguinha, arranhado num cassete com timbre de radialista, que ele, o Reis, cantava italicamente dia após dia:
Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê…
O homem jurou a si mesmo, pelas consolações da Virgem, cujo semblante triste trazia pendurado pelo pescoço em um pingente de cobre, recordação da única viagem a Aparecida, jurou que tocaria essa canção todos os dias de sua vida, em homenagem à falecida esposa, Marcenda, que partiu muito jovem, vítima de doença fatal. Foi a música tema do baile de sábado à noite onde se conheceram, evento voltado à comunidade e organizado à época semanalmente pelos alunos da fanfarra jovem da escola estadual Professor Alípio de Barros. E assim o fez, disso não poderá ser acusado lá no além.

CRÉDITO DA FOTO: Pixinguinha, 1959, Arquivo Nacional
Após cerca de dez anos de volante, com algum trocado no bolso, o Reis conseguiu substituir a transitoriedade da vida automóvel pelo sedentarismo pacífico de um bar-karaokê, onde recebia o público pouco sortido de operários cascudos e engraxados, desempregados alcoólatras, estes por longas tardes de suor, e prostitutas da vizinhança, que aqueciam a goela de cachaça, antes de partirem para o tranco da noite, para alívio de almas tímidas resgatadas pela fé no anonimato, sim, as prostitutas são as verdadeiras fadas do mundo.
… e os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo…
O pequeno estabelecimento retangular, sem alvará, está subentendido, foi construído por ele próprio, com placas de zinco na casca de fora, atravessadas por dentro por um pequeno balcão de madeira carcomida e impregnado de santinhos de eleições passadas. O terreno pertencia e pertence ainda hoje à companhia pública de estradas de ferro, e o trem, propriamente dito, nunca passou e nem passará por aquelas bandas. Amarrado na parte superior da fachada externa, enfrentando o morro de cimento logo adiante, um pequeno letreiro em luz neon onde se lia o que a coisa era – Boteco do Reis.
No ambiente interno do bar, pouca coisa, até pela falta de espaço, cabiam apenas cinco gatos-pingados em pé. De relevante, apenas um retrato em preto e branco da dita cuja na parede e, por detrás do balcão, uma geladeira vermelha para a cerveja, a TV conectada ao aparelho cantante e duas prateleiras: uma para os licores e outra para os tira-gostos.
…mas mesmo assim foges de mim!
Ricardo Reis atravessou décadas nessa rotina metálica de bar e karaokê. Ou, melhor posto, foi atravessado, já que seu corpo cansado era a única constante nessa equação da vida suburbana, enquanto as demais variáveis, que julgava controlar, se alteravam a todo instante diante de seus olhos observadores. O envelhecimento se dá desse modo, pelo impacto do tempo na carne, fluxo intenso e irrefutável, até que se esgote um ou outro, o tempo ou a carne.
No fim de cada dia, ao invés de voltar para casa, uma alvenaria entre tantas, duas ruas acima, na Padre João de Almeida, o homem sentava-se melancólico em uma cadeira de praia à porta de seu, entre aspas, palco iluminado, ligava umas luzes estroboscópicas, em tons de vermelho e azul, e aguardava mais algum cliente eventualmente disposto a arranhar clássicos da música popular brasileira. Poucos se aventuravam na cantoria, como era de se esperar, a noite afinal é perigosa e o repertório constante do único CD que acompanhou a compra do aparelho de karaokê, Sucessos do Rádio, embora para ele fosse o mundo, não era lá muito conhecido nessas entranhas paulistanas.
Ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso e o muito, muito que te quero…
Não importava, o Reis seguiu firme em seu desígnio, compondo o cenário da Pirituba dos anos noventa, dois mil e dois mil e dez, trinta anos, sem jamais imaginar que um dia uma fotógrafa jovem e de roupas estranhas da zona oeste se interessaria em retratar a memorabília de sua época de ouro, já bastante empoeirada por resíduos de outras épocas. O ensaio produzido ganhou alguma repercussão com a publicação em uma conhecida revista semanal e, mais importante que isso, cumpriu a função de registrar em meio aos escombros da vida simples a caricata dedicatória de um homem a sua falecida esposa.
E quando percebeu que enfim chegara a sua hora, logo antes de morrer, de insuficiência cardiorrespiratória, porque era velho e o mundo, impiedoso, pediu a uma antiga cliente que se certificasse que seria sepultado sem camisa e, sobre o peito, o seu batido chapéu Panamá, que o acompanhou por tanto tempo e preencheu tanta ausência. Queria também a certeza de que do epitáfio, talhado em sua lápide por R$ 600, pagos antecipadamente à funerária, constasse a letra dessa canção brasileiríssima, um último gesto dedicado à querida Marcenda:
… e como é sincero meu amor, eu sei que tu não fugirias mais de mim!
Não deixou herdeiros e descansou em paz, enfim, no dia 5 de novembro de 2020.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Gustavo Buttes
É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.
Leia também

Reinventando o Brasil pela arte
Continue lendo...
O Dedinho, a Ovelha e o Plágio Involuntário
Continue lendo...
A invisibilidade das mulheres na Independência do Brasil
Continue lendo...