Nas últimas semanas, as redes sociais foram inundadas pela redescoberta de aulas e vídeos da profª Maria da Conceição Tavares, majoritariamente disponíveis no canal do Youtube do Instituto de Economia da UNICAMP. Com seu estilo apaixonado e uma retórica inflamada, combinados com uma enorme profundidade analítica e teórica, Conceição Tavares é o antônimo do autoproclamado “cientista econômico neutro” e da figura do moderno tecnocrata, ambos tratados com desdém pela professora.
Vejo em Conceição a personificação de um “modelo” de economista e intelectual que é cada vez mais raro em nossa profissão. Assim como Vinícius de Morais não era apenas um poeta, mas vivia intensamente sua poesia, Conceição não é apenas uma professora de economia, mas uma incansável militante em favor do desenvolvimento econômico brasileiro, que vivia intensamente os dramas e dilemas de nosso país.
Em entrevista para o programa “Agenda Econômica”, Conceição enviou uma mensagem para jovens economistas onde trata de dois aspectos que considera fundamentais para a formação de um profissional desta área: a multidisciplinariedade, com destaque para o conhecimento da história e da política; e o necessário compromisso com o desenvolvimento econômico e social do Brasil, acima de qualquer expectativa de enriquecimento próprio.
Inspirado pela professora, resolvi recuperar um debate que fiz no ano de 2016, na UNESP, onde busquei apresentar o que entendo por “economia” e qual seria o papel de um economista em um país subdesenvolvido. Longe de querer encerrar tão complexo debate, apenas trago algumas linhas de uma visão que, de alguma forma, está calcada na interpretação do mundo (e da economia) que aprendi com Conceição Tavares, Furtado, Belluzzo e tantos outros intelectuais que tive o prazer de conhecer, seja pessoalmente, seja através de suas obras.
O que é economia? Do ponto de vista teórico, é uma ciência social que tem origem na filosofia moral, muito próxima do liberalismo nascente de então. Quando de seu surgimento, recebe a alcunha de “economia política”, denotando a profunda conexão entre os dois ramos do saber.
Com o passar do tempo, a economia se inspirou nas ciências naturais/biológicas e na física, consideradas em diferentes momentos os paradigmas do “saber científico”. Ao longo de sua trajetória, a economia incorporou influências da psicologia, da matemática, da história, da sociologia, da antropologia, da ciência política, demonstrando a inescapável multidisciplinariedade exigida para a compreensão do fenômeno econômico.
É verdade que nem sempre a multidisciplinariedade é bem vista entre os economistas. Particularmente após a revolução marginalista (ainda no século XIX), os então chamados “cientistas econômicos” (em oposição aos clássicos economistas políticos) buscaram se afastar do restante das ciências humanas e se aproximar o máximo possível das chamadas “ciências duras”, almejando um espaço no panteão do saber científico.
Apesar de ter tido sucesso em ampliar sua influência sobre outras ciências humanas, com sua uma abordagem centrada no individualismo metodológico e na maximização de utilidades, a realidade é que a economia segue sendo uma ciência social e partilhando de vários dos dilemas metodológicos típicos desse ramo do saber, como o tratamento de temas com complexidade, incerteza radical, viés de seleção, não ergodicidade, etc. O falseamento de hipóteses teóricas é um desafio particularmente difícil de ser enfrentado nas ciências humanas, em particular quando tratamos de variáveis multicausais em um ambiente aberto.
O profissional formado em economia deve enfrentar esses dilemas e desafios se valendo de elementos de múltiplas disciplinas e saberes. Não há uma fórmula ou manual que diga quais as qualidades e conhecimentos que um bom economista deve dominar. Apesar disso, arrisco aqui elencar trezes pontos que acredito que todo economista deveria se lembrar:
1) não existe economia sem política;
2) por trás de cada teoria econômica existem também interesses, não apenas ideias;
3) a retórica é parte fundamental do nosso campo de conhecimento;
4) a realidade não cabe num modelo (seja ele matemático ou não);
5) a estatística/econometria é uma ferramenta fundamental, mas não é o único método cientificamente aceitável para abordar seu objeto (abrace o pluralismo metodológico);
6) o método histórico é importante para dar sentido tanto para a teoria, quanto para os dados;
7) dados são fundamentais para explicar os fenômenos, mas não falam por si mesmo (não existe análise “data driven“);
8) por mais geral que seja sua teoria, você sempre vai precisar de elementos teóricos de outras tradições para dar conta da realidade (abrace também o pluralismo teórico);
9) economia é apenas uma dentre as várias áreas do conhecimento dentro da ciência social, não a superestime;
10) uma teoria que serve para um país desenvolvido não necessariamente se aplica a um país subdesenvolvido;
11) o mercado e o capitalismo são uma construção social e histórica, nada tem de natural;
12) Não existe economia capitalista sem moeda e crédito. Portanto, se seu modelo não leva isso a sério, seu modelo não é sério;
13) o economista não apenas observa, ele transforma o mundo. Portanto, tenha compromisso com o desenvolvimento de seu país, não apenas de seu bolso.
Em se tratando de economistas que vivem em um país subdesenvolvido, nosso desafio é dobrado. As desigualdades sociais, regionais, o atraso tecnológico, a ausência de um sistema robusto de crédito e financiamento ao desenvolvimento, a posição subordinada do país na hierarquia monetária, a fragilidade financeira e tantos outros aspectos devem ser levados em consideração para a análise de uma economia subdesenvolvida, mas não necessariamente para uma economia central.
Como bem nos ensinou Furtado, o subdesenvolvimento não é uma mera etapa do desenvolvimento econômico, mas uma construção histórica e social que tende a se reproduzir. Nosso atraso é também um projeto político de setores poderosos de nossa sociedade. Sendo assim, a superação do subdesenvolvimento deveria fazer parte do projeto intelectual de qualquer pessoa que queira usar a alcunha de “economista” no Brasil. E esse é um desafio que a história de Maria da Conceição Tavares e tantos outros nunca nos deixarão esquecer.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Mello
É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.
Leia também

Super-ricos, tributação e desigualdade no Brasil
Continue lendo...
IREE Webinar: As armadilhas do déficit zero
Continue lendo...