Clarice Ferraz: Eletrobras privada não garante mais investimentos – IREE

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Clarice Ferraz: Eletrobras privada não garante mais investimentos

Por Samantha Maia 

A Eletrobras, maior empresa do setor elétrico da América Latina, foi privatizada no dia 14 de junho de 2022, por meio de uma capitalização, operação em que a União, até então com 62% da empresa, ofereceu novas ações na bolsa de valores, sem aumentar o seu capital. A oferta atraiu R$ 33,7 bilhões e a Eletrobras passou a ser uma companhia privada sem controlador.

A privatização contou com o pagamento de uma outorga da Eletrobras para a União, feito no dia 20 de junho, de R$ 26,6 bilhões, referente a renovações de concessões de usinas. A empresa também vai pagar R$ 32 bilhões ao longo de 25 anos a um fundo setorial, a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para mitigar ajustes tarifários. Outro compromisso acertado na privatização foi um investimento de 9,7 bilhões em bacias hidrográficas em 10 anos.

A Eletrobras teve lucro de R$ 5,7 bilhões em 2021. Com valor de mercado de R$ 65,7 bilhões, ela é responsável por cerca de um terço da capacidade de geração de energia elétrica no Brasil e tem quase metade das linhas de transmissão do país. Sua capitalização é a maior privatização feita no governo de Jair Bolsonaro, sob a justificativa de atrair investimentos e tornar a empresa mais eficiente.

Para se ter uma ideia, o Ministério de Minas e Energia calcula no Plano Decenal de Expansão de Energia que é necessário se investir R$ 530 bilhões em geração e transmissão no Brasil até 2031. Nos últimos 10 anos, os investimentos anuais da Eletrobras caíram mais de 50%, chegando a R$ 4,7 bilhões em 2021.

Crítica da privatização, a economista Clarice Ferraz*, Professora da UFRJ e Diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), afirma que o processo foi apressado e que não há garantias de mais investimentos como vem sendo prometido.

“Estou falando de um setor que está numa revolução tecnológica, que exige investimento em infraestrutura e inovação. O agente privado tem um nível mais baixo de tomada risco, que protege os interesses dos acionistas. Já o Estado tem o perfil de tomar mais risco e poder de articulação. Cada um no seu papel”, diz Clarice Ferraz.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista do IREE com a especialista sobre o contexto dessa privatização e os efeitos para o setor e para a população brasileira.

Como analisa o processo de privatização da Eletrobras?

Clarice Ferraz: A semente para a privatização da Eletrobras foi plantada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, quando ele começou a abrir o setor elétrico nos anos 1990. O objetivo dele era fazer a abertura total do setor. Mas aconteceu o apagão em 2001 e o processo foi paralisado. Veio uma crise muito severa, teve queda de PIB, pessoas sem energia.

Quando vem o governo Lula, se abandona o processo de privatização totalmente, e aí ficou esse sistema elétrico assim, meio uma coisa, meio outra, com o qual chegamos até aqui.

A ideia de se privatizar a Eletrobras volta então a ganhar força a partir do golpe de 2016. Desde o governo Temer, o Conselho de Administração tem agido para preparar a empresa para privatização. Por decisão do Conselho de Administração houve desde 2016, e sobretudo a partir de 2017, uma redução do nível de investimento da empresa.

E por que foi possível privatizar neste momento?

Clarice Ferraz: A privatização acontece no meio do torpor que a sociedade brasileira se encontra. O Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), faz a privatização passar em regime de urgência durante a pandemia. Pelos ritos normais, eles não teriam tido tempo de realizar a privatização neste ano.

Isso é a expressão da nossa crise democrática. Colocar a privatização em regime de urgência no meio da pandemia e ser aprovada rapidamente pelos Deputados, com vários jabutis, que foram medidas compensatórias negociadas pelo Congresso para atender a interesses específicos de parlamentares que conseguiram piorar ainda mais o que estava acontecendo.

Foi nesse ritmo que a coisa aconteceu. Conseguiram aprovar agora porque a gente está em meio ao caos com um governo que não respeita nem as regras, nem o interesse público. Foi um processo extremamente traumático e que provou a falência das nossas instituições.

Quais as consequências da privatização da Eletrobras?

Clarice Ferraz: Essa privatização se dá em um momento de muitas mudanças de regras de comercialização que vão afetar a precificação da energia e outra série de coisas. E nesse contexto você vai ter uma União com menos poder para definir os rumos e planos estratégicos da empresa.

A União se tornou um acionista da Eletrobras como outro qualquer, com 45% das ações, mas 10% de poder de voto, que é a barreira. Então a União deixa de ser o acionista majoritário para ser um acionista com poder de voto de 10% como os demais.

Como não há obrigatoriedade ou contrapartida exigida nessa privatização, não temos por que aguardar tantos investimentos como está sendo prometido. O aumento de investimento é apenas um desejo. Não é interesse de uma Eletrobras privatizada expandir a oferta para o Brasil ter uma energia barata. O objetivo da empresa privatizada é maximizar os lucros de seus acionistas.

Das grandes empresas do setor elétrico do mundo, mais de 60% é estatal. Houve uma onda de liberalização, mas a maioria das grandes não foi privatizada e algumas privatizadas estão em processo de reversão.

Como vê o papel do setor público e do setor privado no setor elétrico?

Clarice Ferraz: Estou falando de um setor que está numa revolução tecnológica, que exige investimento em infraestrutura e inovação. O agente privado tem um nível mais baixo de tomada risco, que protege os interesses dos acionistas. Já o Estado tem perfil de tomar mais risco e poder de articulação. Cada um no seu papel.

É flagrante o problema da relação público-privada no Brasil. Fica nessa vilanização do papel do Estado em oposição ao setor privado. Não é oposição, como diz o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, é uma contradição. Cada um tem o seu papel e a gente tem que fazer isso funcionar da melhor maneira possível.

A eletricidade é insumo essencial, tem que ter função de empresa pública, senão desvirtua o processo de desenvolvimento econômico inteiro. O setor elétrico não existe por ele mesmo.

Qual será o impacto da privatização sobre a conta de energia?

Clarice Ferraz: O primeiro impacto para o consumidor é começar a sentir os efeitos da descotização, uma regra da privatização que libera a parte mais barata da energia que temos contratada hoje com a Eletrobras para venda no mercado livre.

Ou seja, aquele pacotão de energia baratinha, chamada de modalidade de cota, passa a ser vendido no mercado livre, e a Eletrobras vende se ela quiser, para quem ela quiser, com contrato de duração que ela quiser.

A gente pode até questionar o mecanismo que criou as cotas, pela Medida Provisória 579, quando a Presidenta Dilma Rousseff renovou as concessões de usinas remunerando apenas por operação e manutenção. E a energia ficou bem barata, mas isso foi gravíssimo, porque foi em muito pouco tempo e a Eletrobras estava alavancada em vários investimentos grandes.

Mas essa descotização é inconstitucional, porque estava contratada até 2042. A privatização da Eletrobras quebrou um contrato com a população, que tinha direito a essa energia mais barata. Tem uma lei da energia de cota.

O impacto inflacionário disso, a gente não tem ideia ainda. Vai depender da nova regra do mercado que está sendo discutida, numa absoluta indefinição institucional em que se dá essa privatização.

 

* Clarice Ferraz é economista, Professora da Escola de Química da UFRJ, onde integra o Grupo de Estudos em Bioeconomia, com Mestrado em Energia (Advanced Master in Energy) pela Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL); Mestrado em Administração Pública, com especialização em Gestão do Meio Ambiente, pela Universidade de Genebra; Doutorado em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Genebra e pós-Doutorado pelo Instituto de Economia da UFRJ. Pesquisadora Associada do Grupo de Economia de Energia do Instituto de Economia da UFRJ, onde colabora desde 2012, e Diretora do Instituto Ilumina.



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