Mais outro incêndio num patrimônio cultural. Surpresa? Não. Essa tragédia era absolutamente previsível e não faltaram alarmes, manifestações e abaixo-assinados que atiçaram neste governo revanchista uma reação absolutamente oposta ao que se desejaria. Há um ano o governo federal enviou policiais federais para trancarem as portas da Cinemateca e recolherem as chaves, despedindo técnicos altamente especializados em catalogação, preservação e recuperação do acervo.
Era sabido o risco que se corria sem aqueles funcionários abnegados que havia meses insistiam em trabalhar mesmo sem receber salários (salários esses não pagos até hoje), mas não abandonavam os postos, cientes da necessidade de cuidados permanentes e do perigo que aquele material altamente inflamável corria se não fossem mantidas as condições climáticas adequadas para cada tipo de suporte.
O acervo era composto por mais de um milhão de documentos e cerca de duzentos e cinquenta mil rolos de filmes, entre tantas outras preciosidades de audiovisuais. O conteúdo é praticamente toda a produção de longas, médias e curtas metragens brasileiros, já que por um quesito legal da Ancine há uma exigência de que toda produção audiovisual comercializada deposite ali uma cópia da película.
Encontram-se na instituição os acervos da TV Tupi, do Canal 100, do Repórter Esso, da Atlântida, da Cinédia, da Vera Cruz, do Glauber Rocha, Rogério Sganzella, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Mazzaropi, cinema mudo, expedição do Mal. Rondon, entre tantos documentários, filmes publicitários e muito mais. Conta com um excelente laboratório de restauração. É a maior cinemateca da América Latina, uma das cinco maiores do mundo e, em 2011, foi eleita pela Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) uma das três melhores do mundo.

São Paulo – A Cinemateca Brasileira conta um acervo de 245 mil rolos de filmes e duas salas de projeção. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Pelo que se tem de informações, além de centenas de rolos de películas, no galpão da Vila Leopoldina encontravam-se todos os arquivos com documentos sobre a história da Cinemateca, da Embrafilme, do Instituto Nacional de Cinema, da SAV e da Ancine que se perderam no fogo. Nenhum pesar foi demonstrado pelos órgãos responsáveis, a começar pela Secretaria Especial de Cultura que, depois ter pertencido ao Ministério da Cidadania, sem maiores explicações passou para o do Turismo e, nesses últimos dias, se alojou no Ministério do Trabalho.
Sabe-se apenas que, exatamente no dia seguinte ao incêndio na Cinemateca, foi publicado um edital de chamamento público para a escolha da Organização Social que assumirá a responsabilidade pela administração da Cinemateca. Isso se dá, ironicamente, um ano após o ministério de ocasião ter rescindido o contrato com a antiga administradora, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, e fechado suas instalações para funcionários e público. No entanto os valores a serem repassados à nova organização são absolutamente inviáveis para contratar funcionários e dar prosseguimento ao trabalho de recuperação, manutenção e difusão da filmografia brasileira, acolhimento a estudantes e pesquisadores, exibição de mostras de cinema e todo trabalho voltado para formação de público. Entre os critérios para seleção da instituição a ser escolhida, contam cinco pontos para a que tiver maior capacidade de estabelecer parcerias financeiras e dois pontos para a que tiver melhor preparo técnico para lidar com a atividade fim da casa.
O descaso do poder público com o patrimônio, com a memória cultural (já comentada em artigo anterior), com os pesquisadores, com os estudantes, com a sociedade e com os técnicos especializados tem que ser investigado como Crime de Prevaricação pelo Ministério Público. Ex-funcionários da casa, em manifesto intitulado “Crime Anunciado”, chamam atenção para “certos danos silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio e igualmente irrecuperáveis”.
Essa tragédia se deu na mesma semana de outro escândalo na Cultura, quando o Presidente da República assinou um decreto que cria inúmeras armadilhas diretas e indiretas para inviabilizar o uso da Lei Rouanet por artistas, produtores e entidades que não comunguem com a cartilha deste governo. Ao não ter publicado a indispensável Instrução Normativa, a Secretaria de Cultura impede a execução de projetos já aprovados – com verbas captadas – de darem prosseguimento às atividades que têm a data-limite para serem executadas no 31 de dezembro do corrente ano.
Outro desastre recente, de alcance ainda não dimensionado, foi o “apagão do CNPq”, órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) revelou à revista Fórum que seu servidor queimou, que não havia backup da plataforma lattes e que ainda não é possível dimensionar a quantidade de dados perdidos. O neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ, afirmou pelo Twitter que a situação representa “uma metáfora cruel para o que vive toda a comunidade científica brasileira diante de um governo que não acredita em ciência”.
Completando a crise moral que devassou a semana com movimentos sempre direcionados ao desmonte do conhecimento, da memória, das pesquisas, do aprendizado e reflexões, o atual presidente insistiu nas ofensas às instituições com insinuações esdrúxulas e campanhas ofensivas contra cidadãos comuns. O exemplo mais agressivo, ou a insinuação mais ameaçadora dessa postura me pareceu ser a irônica homenagem ao Dia do Agricultor divulgada pela SECOM – Secretaria Especial de Comunicação Social, ao apresentar o perfil de um miliciano carregando um fuzil no ombro, no lugar da tradicional imagem de um trabalhador rural carregando sua enxada.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
Leia também

IREE Webinar: Getúlio Vargas, ontem e hoje
Continue lendo...
Apresentação do mestrado Lobby, Corrupção e Ética Pública
Continue lendo...