Capitalismo: uma apresentação – IREE

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Capitalismo: uma apresentação

Alysson Leandro Mascaro

Alysson Leandro Mascaro
Jurista, filósofo e professor



Na contemporaneidade, as sociedades se organizam e se determinam materialmente a partir do modo de produção capitalista. Não se trata de um modelo eterno nem o único possível à história das relações humanas: o capitalismo é um modo de produção bastante recente, arraigado há menos de três séculos.

Desde o século XVIII, no entanto, suas características são falsamente anunciadas como se fossem típicas da natureza humana: individualismo, concorrência, apropriação privada, desigualdade de classes, vinculação social apenas mediante contratos, exploração, lucro, acumulação.

Ocorre que essas formas são específicas de um tempo histórico, não sendo, portanto, da natureza humana, mas sim de uma de suas sociabilidades possíveis. Outros modos de produção guardaram outras características, não necessariamente melhores ou mais lisonjeiras – escravismo e feudalismo eram organizações também da exploração social, mas a partir de distintas bases.

O capitalismo surge em algumas sociedades europeias a partir de fissuras, transformações e rompimentos em face das economias até então existentes, feudais. Sua irrupção não era um acontecimento historicamente inexorável. Na Roma antiga, escravista, havia inclinações ao comércio até maiores que no feudalismo; no entanto, foi na modernidade que se estabeleceram de modo decisivo circuitos de apreensão privada para fins mercantis e, também, formas de exploração do trabalho que não fossem apenas compulsórias (como a escravista ou a feudal), mas negociais, mediante paga de salários aos explorados.

O capitalismo nem é a decorrência lógica do feudalismo nem seu sucessor necessário nem é o ápice da historicidade humana: é mais uma das formas havidas de exploração dos seres humanos pelos seres humanos, constituindo, então, apenas um dos capítulos da extensa história da humanidade dominada, oprimida e dominada, história a qual, no futuro, em verdade, eventualmente se poderá chamar de pré-história da vida humana emancipada e plena.

Karl Marx, na obra mais decisiva para a compreensão da sociabilidade contemporânea, “O capital”, identifica na mercadoria o átomo do capitalismo. Todas as coisas se tornam, sob relações capitalistas, mercadorias. Seu valor não tem relação com o uso, mas com a troca.

Tanto os meios de produção quanto os bens de consumo, no passado escravista ou feudal, eram apropriados ou trocados de mão majoritariamente pela força bruta ou pela tradição. De outro lado, no capitalismo, a apropriação se torna, especificamente, propriedade privada, de tal sorte que tudo é então circulável como mercadoria, intercambiável mediante contrato. A razão das trocas não é mais apenas a fruição, mas passa a ser a busca da valorização. Mercadorias e dinheiro se trocam em busca de mais dinheiro.

Para que as mercadorias se troquem e a valorização do valor aconteça, seus portadores se vinculam contratualmente. Todos os sujeitos, que na concretude econômica da vida são desiguais, passam a ser igualados e considerados livres no momento em que contratam. Assim sendo, a sociedade capitalista, das mercadorias, é também, compulsoriamente, uma sociedade dos sujeitos de direito, que pela sua equivalência de vontades transacionam e fazem as mercadorias circularem. O capitalismo é, também, uma sociedade organizada politicamente por Estados, elementos terceiros em face dos próprios agentes da produção, mas garantes da propriedade privada e das obrigações contraídas pelos sujeitos.

O capitalismo não é, no entanto, apenas um modo de circulação de mercadorias. É, acima de tudo, um modo de produção. É apenas quando a exploração da produção se faz de modo mercantil que então uma forma de relação social capitalista se estrutura. A base das relações de produção capitalistas é a da exploração do trabalho sob forma assalariada. Capitalistas e trabalhadores são tornados iguais e livres para jungir-se em vínculos contratuais mediante os quais estes são explorados por aqueles, recebendo em troca salário e permitindo aos exploradores entesourar uma riqueza advinda da produção que não mais volta ao trabalhador que a produziu, um mais-valor.

Com a revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, deu-se a subsunção real do trabalho ao capital: o capitalista controla as fases e os mecanismos da produção, de tal sorte que pouco conta a qualidade específica do labor de cada trabalhador, mas sim um dispêndio genérico de energia, balizado apenas pelo tempo de trabalho, ao qual se paga salário. É então nesse momento que o trabalho se torna plenamente mercadoria. Nessa base material, produtiva, erige-se uma forma de vínculo social sempre mercantil, que a toda a sociedade imporá sua coerção.

O capitalismo, assim sendo, não se confunde com a mera existência de mercadorias, mas sim com uma arraigada materialidade da produção como mercadoria – o assalariado a partir de condições de trabalho abstrato. O segredo do capitalismo é a sua específica exploração do trabalho. Sociedades do passado conheceram mercadorias, mas a produção era compulsória, escravista ou feudal. O capitalismo só se estabelece como modo de produção quando o trabalho é plenamente mercantilizado, daí seu caráter historicamente recente. Também daí implica que a superação do capitalismo não é uma melhor distribuição de mercadorias ou o aumento salarial, mas o fim das relações de produção intermediadas por salários. O socialismo passa pela tomada dos meios de produção pela classe trabalhadora e pela consecução de relações sociais que não sejam mais coagidas pela forma mercadoria.

Ao contrário da ideologia capitalista, que crê ser este modo de produção o motor do desenvolvimento e do bem-estar, um celeiro de oportunidades abertas a todos, e que pretende ver na meritocracia a decorrência intrínseca de uma pretensa competição entre iguais, o capitalismo tem por único sentido a acumulação. Valorizar o valor é sua lei. A produção, a circulação, a propriedade privada, o contrato e o salário não buscam a melhoria das condições sociais, não se orientam ao progresso, não se voltam a preceitos éticos, não têm limites morais. Atendem, exclusivamente, a uma dinâmica de exploração, lucro e acúmulo. Pereat mundus, fiat lucrum.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Alysson Leandro Mascaro

Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).

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