Estamos vivendo a pior crise sanitária, econômica e social da história do Brasil. Em meio ao avanço assustador das mortes causadas pela segunda onda da pandemia do coronavírus, o governo Bolsonaro decidiu “mudar a narrativa” e rever a posição de que a crise havia se encerrado em 31 de dezembro de 2020, quando decidiu não renovar o decreto de calamidade pública.
O que poderia parecer uma luz de esperança, na prática se transforma em obscura desilusão: cada nova medida tomada pelo governo se revela tardia, insuficiente ou contrária ao objetivo de garantir uma travessia menos penosa do “abismo que cavamos com nossos pés”.
No campo sanitário, o governo se afasta lentamente da tese da “gripezinha”, da cloroquina ou de outras soluções mentirosas, passando a falar em compra de vacinas, algo impensável no ano passado, quando Bolsonaro fazia “lives” atacando as vacinas e garantindo que não as tomaria.
Se essa mudança de narrativa se transformasse efetivamente em uma mudança de atitude, haveria esperança (mesmo que tardia). Mas a escolha de Queiroga para o Ministério da Saúde e seu discurso de “continuidade” com a gestão Pazuello nos traz a certeza de que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”, como diria Lampedusa.
Na seara econômica, o neoliberalismo arcaico de Guedes segue dando as cartas. Ao invés de seguir o resto do mundo e garantir um suporte robusto a atividade econômica em meio ao pior momento da pandemia, a obsessão de Guedes segue sendo a destruição do Estado.
A aprovação da PEC 186 no Congresso Nacional é a prova disso: não era necessária para pagar o Auxílio Emergencial (que poderia ser criado por vias mais céleres), mas foi fundamental para limitar seu valor (R$ 44 bilhões) ao mesmo tempo em que criava uma nova regra fiscal que irá comprimir os investimentos e acelerar o desmonte dos serviços públicos universais no longo prazo.
Ao limitar o valor e o escopo do novo Auxílio Emergencial, Guedes ignora toda a literatura científica que aponta o elevado multiplicador fiscal e o papel decisivo do auxílio em 2020, tendo sido responsável inclusive pela melhoria da relação dívida/PIB.
Para piorar, a PEC 186 não prevê outros gastos extraordinários que se mostraram fundamentais para enfrentar a primeira onda do coronavírus: não há garantia de verbas para saúde, para pequenas e médias empresas, para manutenção de empregos formais e para auxílio a Estados e municípios.
Em suma, o objetivo da PEC 186 não foi garantir o pagamento do auxílio emergencial, mas limitá-lo a um valor mínimo, ao mesmo tempo em que criava novas medidas de destruição do Estado.
Nesta semana, foi a vez do Banco Central colaborar com a recessão econômica. Apesar de autorizado pelo Congresso, o Banco Central brasileiro não atuou em nenhum momento no mercado de dívida pública para reduzir os juros de longo prazo no Brasil, permitindo que eles se aproximassem de 9% ao ano.
Também assistiu inerte à desvalorização do real, se negando a adotar qualquer mecanismo de gerenciamento do fluxo de capitais e apenas tardiamente se valendo do instrumento de “swaps cambiais” para conter a volatilidade de nossa moeda.
O resultado dessa inação foi a crescente pressão inflacionária, já visível nos indicadores de inflação no atacado (como IGPs) e que agora se transferem para os preços no varejo, em particular para a população de menor renda, cuja inflação se aproxima de 7% no ano.
Diante de um cenário de inflação cada vez mais forte e real cada vez mais fraco, o COPOM decidiu elevar em 0,75% a taxa SELIC, já prevendo novas rodadas de elevação nos próximos meses. A ideia é conter a desvalorização cambial provocada pela perda de credibilidade do Brasil aos olhos dos investidores globais e pelo aumento das taxas de juros longas nos EUA.
Ao elevar rapidamente a taxa de juros básica, o Brasil se torna “menos desinteressante” para o investidor financeiro, mas “mais desinteressante” para o investidor produtivo, que preferirá alocar seu capital em ativos financeiros seguros do que investir em uma economia que caminha a passos largos para a estagflação.
Além disso, o aumento dos juros causará um considerável impacto fiscal, já que a dívida pública brasileira se concentrou no curto prazo e foi crescentemente atrelada à SELIC nos últimos anos. Caso os juros alcancem 5% a.a., conforme projeção atual do mercado financeiro, o custo de carregamento da dívida pública deve crescer aproximadamente R$ 100 bilhões de reais ao ano, mais que o dobro do valor destinado ao auxílio emergencial. É simples notar como isso irá aprofundar a já escandalosa desigualdade social no Brasil.
Ao tomar posse do cargo, todo presidente eleito jura “Manter, defender e cumprir a Constituição”. Já é conhecido o desprezo do atual mandatário pela Constituição Cidadã e tudo o que ela representa, incluindo a defesa da vida, da dignidade humana, dos direitos humanos e sociais.
Aparentemente, Bolsonaro decidiu substituir o juramento constitucional por outro mais afeito a sua personalidade, encontrado no mundo da fantasia onde muitos de seus apoiadores habitam: “Eu, solenemente, juro não fazer nada de bom”. Infelizmente, o presidente e seu governo têm se mostrado muito competentes em cumprir à risca esse juramento.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Mello
É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.
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