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Bolsonaro e o autogolpe

Guilherme Boulos

Guilherme Boulos
Coordenador do MTST



A ida de Bolsonaro numa manifestação de fanáticos do AI-5, em frente ao QG do Exército Brasileiro, acendeu o debate sobre suas intenções golpistas. De fato, foi um gesto com força simbólica: pelo local, sede da principal força armada do Estado; pelo momento, numa pandemia, desrespeitando determinações de isolamento e a proibição de aglomerações; e pelo contexto, em meio a uma conflagração institucional com o chefe do Legislativo, os governadores de estado e setores do Judiciário. Para muitos, soou quase como um apelo às armas. Para outros, apenas bravata. Afinal, o que quer Jair Bolsonaro?

Em primeiro lugar, não é razoável explicar suas ações como “maluquice”, ver nelas ausência de direção. Por mais medíocre e destemperado que seja Bolsonaro, ele está na Presidência, tem um grupo e uma máquina que o respalda, enfim, segue alguma estratégia. Há método nesta loucura, disse Polonius, na grande tragédia shakespeariana.  O que ele fez no domingo, defendendo o AI-5 e estimulando as pessoas a quebrarem o isolamento físico, não foi propriamente uma novidade, um arroubo de fim de semana.

Desde o dia 1 de janeiro de 2019, não tem um mês em que Bolsonaro não crie algum fato relacionado à defesa da ditadura, com insinuações de saídas extremistas. Já defendeu torturadores, zombou de vítimas do regime militar, comemorou o golpe de 1964… É o que se chama de aproximações sucessivas. Ele vai repetindo absurdos continuamente ao ponto de serem naturalizados. Com isso, neutraliza as resistências da sociedade. De repente, estamos todos falando de AI-5, o que seria inconcebível há poucos anos. Por óbvio, isso tem também um efeito de distração diante da completa incapacidade de seu governo em responder aos grandes problemas da sociedade brasileira. Mas vai além.

Bolsonaro humilha jornalistas e ataca a imprensa diariamente. Cria a toda hora tensão com os outros poderes e ameaça a oposição e os movimentos sociais. Não pretende qualquer tipo de estabilidade institucional ou de governabilidade. Sempre que pode, estica a corda. Essas atitudes fizeram Bolsonaro perder parte de seu apoio social. Hoje ele tem cerca de 30% de aprovação, metade do que tinha quando entrou. Mas isso não parece ser um problema para sua estratégia: ele não governa pra ter maioria. Quer na verdade radicalizar a sua minoria, sobretudo o núcleo duro mais fanático, algo entre 10% a 12% da população, de acordo com o Datafolha. Quer manter os pittbulls raivosos e mobilizados. E é justamente isso que ele tem feito.

Convenhamos, não é o comportamento de quem pretende governar democraticamente, mas de quem aposta em algum tipo de ruptura institucional e para isso precisa ter sua tropa permanentemente organizada. É aí que entra a hipótese do autogolpe. Um tipo de golpe que não visa a tomada do governo – que ele já ocupa – mas sim a ampliação do poder, usurpando-o das outras instituições e impondo leis de exceção, aliás, exatamente o que representou o AI-5 em 1968. Não seria um ineditismo histórico. Um caso bem famoso e mais recente foi o autogolpe de Alberto Fujimori, no Peru, em 1992, quando, sendo presidente, conseguiu apoio dos militares para fechar o congresso, intervir no judiciário e perseguir opositores.

Não restam dúvidas de que esse é o desejo de Bolsonaro. Mas não é uma operação simples e necessitaria de apoio relevante nas Forças Armadas. Antes de tudo, ele precisaria construir um ambiente favorável, um pretexto. Ao que tudo indica é isso que  enxerga na crise do coronavírus. O primeiro-ministro da Hungria e amigo de Bolsonaro, Victor Orban, há poucas semanas usou da pandemia para obter a autorização de governar por decreto e usar a força contra opositores. Lá foi o próprio parlamento que aprovou. Aqui, como Bolsonaro não tem apoio do congresso para seu projeto, ele desbrava outros caminhos. Muito mais perigosos e com um custo imenso para a sociedade. Ele aposta no caos. Quer de verdade que a sociedade entre em colapso. O desespero das pessoas é seu combustível para saídas autoritárias.

Vejamos. Por que ele diz para as pessoas saírem às ruas, na contramão de todos os líderes mundiais? Ele é mal informado? Mal assessorado? Pode até ser, mas parece ter algo mais. Ele sabe que o coronavírus será devastador no Brasil, não apenas do ponto de vista da saúde pública, mas especialmente em termos econômicos e sociais. Muita gente vai ficar desempregada. A economia vai despencar no mundo todo e cair provavelmente entre 5% e 10% no Brasil. Isso significa milhões de desempregados, milhões de pessoas atiradas na miséria. Estamos falando de uma crise sem precedentes na história recente.

Ao ser contra o isolamento, de forma irresponsável, ele ganha um discurso. Quer chegar e dizer pra essas pessoas depois “eu avisei”. E contar com o desespero delas para ganhar apoio. Tudo o que Bolsonaro quer é um cenário de saques, violência nas ruas e barbárie. Porque esse é justamente o pretexto que ele precisaria para convencer outros setores a apoiarem um golpe, em nome da “ordem”. Ele quer as pessoas desesperadas e sem alternativa. Aposta numa convulsão social, que, inclusive, criaria terreno fértil para atuação aberta dos milicianos que atuam sob sua influência política e ideológica. O que vimos na Bolívia, com milícias fundamentalistas promovendo a violência aberta, com seqüestros, incêndios e linchamento públicos, para derrubar Evo Morales deveria servir como alerta.

Bolsonaro vê o coronavírus como uma oportunidade política. O seu “programa máximo” parece ser o autogolpe, neutralizando as resistências institucionais e sociais e consolidando uma saída autoritária para a crise. Se não tiver forças, sua linha de ação leva ao menos a um “programa mínimo”: ganhar apoio de setores afetados pela crise econômica – com destaque para comerciantes, pequenos empresários, caminhoneiros, etc. – para sustentar seu governo até o fim e tentar a reeleição. Portanto, por mais tosca que seja a persona de Bolsonaro, não duvidem: há método nesta loucura.



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Guilherme Boulos

É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.

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