Boletim econômico: O dilema do desenho das políticas sociais – IREE

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Boletim econômico: O dilema do desenho das políticas sociais

Confira aqui a análise sobre Mercado de Trabalho, Pobreza e Políticas Sociais produzida pelo Centro de Estudos de Economia do IREE, na edição semanal do Boletim de fevereiro de 2022!

Cada grupo ou composição de forças políticas que ocupa o lugar central na formulação e no desenho das políticas sociais está embasado sobre uma concepção de cidadania, papel do gasto público e, principalmente, sobre o caráter que deve nortear a política social, se navegando por uma premissa da focalização e/ou da ampliação da sua natureza universal.

Este debate ganha maior estofo na crise dos anos 1970 e desde lá tem sido parte das disputas políticas e econômicas, que refletem consensos e dissensos com relação ao papel e ao desenho das políticas sociais, tema que exploremos neste boletim à luz das características que têm adquirido essas mesmas políticas no bojo do governo Bolsonaro e da crise da pandemia.

Muito sucintamente, a teoria que embasa a focalização das políticas sociais – ou seja, a restrição da sua universalidade e a criação de condicionantes para acesso – está ancorada na garantia dos direitos individuais, com diminuta participação estatal na vida pública social, especialmente como fornecedor de bens e serviços na esfera econômica. No exemplo clássico presente nos escritos de Milton Friedman, no que tange ao acesso a educação seria mais conveniente e fiscalmente mais promissor que o Estado transferisse a responsabilidade de ser provedor desse serviço à esfera do mercado e concentrasse sua atenção nas políticas de acesso e na regulação.

Para ampliar o escopo de ofertas de serviços educacionais e para aliviar os setores da sociedade que contribuem através dos impostos para o sistema público e não necessariamente o utilizam, essas teorias de caráter neoliberal advogam que o Estado deve dividir – e na melhor das hipóteses, transferir – essa responsabilidade com o setor privado. Assim, além de possibilitar que as famílias escolham livremente o tipo de educação dos filhos, essas medidas seria importante estímulo à competição entre os vários serviços oferecido no mercado, melhorando sua qualidade.

Para os que não puderem pagar, o Estado atuaria ofertando “cupons” para que as famílias beneficiárias pudessem “comprar” no mercado os serviços educacionais que mais se identificassem com as suas expectativas e arcando com a diferença de preço caso fosse maior que o disponível pelo Estado.

Durante a votação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no ano de 2020, essa concepção reapareceu no espectro da política econômica quando o governo Bolsonaro, através da atuação do seu ministro Paulo Guedes, propôs o deslocamento de recursos destinados à ampliação do fundo universal da educação para bancar um “voucher-creche”. O Ministro chegou a mencionar o desejo de separar R$ 6 bilhões por ano para esse benefício, que seria usado para acessar vagas na rede privada de educação infantil.

E esse não foi o primeiro intento do Ministro nesse sentido. No fim de 2019, o governo já havia apresentado um projeto que desobrigava o poder público a expandir sua rede de escola em regiões com carência de vagas para alunos. Tal investida, no entanto, teria que modificar a Constituição brasileira, na medida em que ela dispõe sobre a obrigatoriedade do investimento prioritário na expansão de vagas na rede pública de ensino, usando o sistema privado apenas como complementar.

Os programas de transferências diretas de renda vêm ocupando espaço cada vez maior dentro do orçamento da assistência social. Isso deve-se aos efeitos mais imediatos da pandemia sobre a contração da renda dos mais pobres e ganhou novos impulso com a criação do Auxílio Brasil no fim de 2021.

A despeito da existência de amplo debate no seio da sociedade, na medida em que até hoje o Brasil opta por sistemas universais, desde as opções seladas na Constituição Federal, está ocorrendo uma mudança gradual no desenho nas políticas sociais, privilegiando as transferências monetárias em detrimento de programas sociais, mesmo que ainda sim focalizados, mas que estão dentro de um desenho mais complexo e integrado.

Marcelo Neri, da FGV Social, menciona que, em que pese houve aumento da dotação orçamentária para o Auxílio Brasil, ocorreu perda significativa de recursos destinado à política direcionada aos moradores em situação em rua, cujos gastos que eram na ordem de R$ 69,9 milhões em 2017 foram zerados em 2020.

Outros programas de desenhos mais complexos que estavam integrados em uma perspectiva mais abrangente de combate à fome, à pobreza e às desigualdades sociais também foram esvaziados ou mesmo cancelados nesse período, tais como o Brasil Alfabetizado e o Programa de Aquisição de Alimentos (PPA). Dessa forma, as transferências monetárias diretas, ainda que com valores acrescido com relação ao Bolsa Família, seguem com deficiências para a resolução das múltiplas causas da pobreza, que se acentuaram nesse período, tais como a população em situação de rua, a evasão escolar e a fome, problemas que eram alvo dessas outras políticas sociais que hoje amargam na negligência ou residual dotação orçamentária.

Portanto, faz-se necessário empreender esforços de forma coordenada, envolvendo distintos especialistas de diversas áreas para que haja uma sinergia entre a necessidade, especialmente em face da urgência da calamidade social, entre transferências de renda direta; desenho de políticas mais complexas e definidas de atuação sobre as causas da pobreza e desigualdade e, concomitante, fortalecimento das políticas públicas de caráter universal ou contributivas, caso da educação, saúde, assistência e previdência social.

O Boletim de Política Econômica do IREE é produzido pela economista-chefe Juliane Furno e pelos assistentes de pesquisa Daniel Fogo e Lígia Toneto.



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