Binarismo, Dialética e 1101 Já! – IREE

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Binarismo, Dialética e 1101 Já!

Ricardo Dias

Ricardo Dias
É luthier, escritor e músico



Vivemos tempos difíceis. Ah, que novidade… Mas pretendo exemplificar, acreditem em mim e me sigam:

TUDO que fazemos é, de alguma forma, organizado por computadores. E computadores são binários. Funcionam na base de 0 e 1, de sim e de não. Nossas decisões são tomadas a partir do que vemos online, na maior parte das vezes. E essas informações vêm de uma base binária…

Sim, estou forçando um pouco a barra, mas nos tornamos binários, também. As sutilezas vão se perdendo, o raciocínio lógico vai se simplificando, até atingirmos a perfeição do “sim”ou “não”, sem o “talvez”. A dialética faz falta. E, amigos, este artigo vai torcer a dialética sem piedade. E, claro, vou perder os poucos admiradores que tenho. É a vida.

Tomemos um fato relativamente recente: o humorista Leo Lins foi demitido do SBT por conta de uma piada, dita em um show tempos antes, sobre hidrocefalia.

Colocado assim, não parece haver dúvida que está tudo certo: fazer piada com isso é de uma estupidez gritante. Um “sim” binário para a demissão.

MAS… Ele estava num palco, era um personagem. O cidadão se notabiliza por contar piadas de mau gosto, crueis, e faz questão de se identificar assim. Seria uma persona como o Zé do Caixão era para o Mojica Marins. Que praticava – no palco – assassinatos, tortura, etc. Mojica até hoje é incensado como gênio… Um personagem no palco faz uma piada imbecil, e perde o emprego; outro, assassina a tortura, e é considerado gênio.

Olha a dialética entrando, colocando uma sementinha de dúvida.

Sigamos: Danilo Gentili, colega de trabalho de Leo, corajosamente postou uma defesa pública do amigo, se arriscando a perder o próprio emprego. Danilo é de direita (estamos sendo binários, certo?), e com suas razões: foi colocado numa ridícula “lista negra” pelo PT, durante seus anos de governo. Ele fez críticas pesadas aos governos do partido, todas legítimas, já que humor a favor é BEM idiota. Ponto para ele.

Ao defender o amigo, Danilo disse o seguinte: Se dez pessoas gostam e uma não, por que devemos atender ao que essa uma disse?

Aí nosso bravo Danilo resvala num dos bastiões da direita: o poder da maioria. Sem perceber, repete o que Bozo disse, que “as minorias vão ter que se adequar à maioria”. Pisou na bola. Empate.

Vamos adoçar um pouco mais: o atentado contra o Charlie Hebdo. Como humor, é um órgão repulsivo, escatológico, grosseiro. Mas virou um símbolo contra o extremismo. Não compraria aquela revista, mas fui no protesto organizado no Rio, contra o atentado.

E se Leo Lins fosse assassinado por alguém indignado com suas grosserias?

Vamos seguir mais adiante: há patrulha contra músicas mais antigas, que retratavam uma mulher diferente da de hoje, uma outra realidade. A cultura do cancelamento ataca impiedosamente a poesia dos anos 40, 50, 60, e por aí vai. Uma burrice.

Mas aplaude o funk, que defende sexo com menores, assassinato de policiais, coisas assim. E essa esquizofrenia acaba contaminando tudo, não somos capazes de raciocinar e separar conceitos, acabamos brigando, pois, no fundo, no fundo, não temos argumento nenhum. Se gostam – e esses que gostam não têm rosto, são apenas a manada de nosso lado – , é bom; se não, é ruim. E não é necessário explicar nada, a força do coletivo é suficiente. Não precisamos pensar.

Temos escrotos na direita e escrotos na esquerda. Os das extremidades, perigosos.

Bem, e você, Ricardo, vai ficar em cima do muro, pontificando sobre a plebe?

O desejo é esse, mas creio que minha cara precisa ser dada a tapa. Então, vamos nós:

-O Leo Lins devia ser demitido?

Não. Acho que ele tem o direito de dizer o que quiser, o humor tem que ser livre – da mesma forma que não se pode matar cartunista do Charlie Hebdo, esfaquear o Salman Rushdie, ou colocar humorista em lista negra. Se EU determino o que pode ou não ser dito, estamos numa ditadura. EU, grifo novamente, não assisto. Não curto, pura e simplesmente. Se alguém não gosta do que é dito, não vá, se retire; se exagerar, processe. Porém censurar, jamais.

MAS… O SBT tem o direito de fazer o que quiser, dentro da lei. Se acha que sua imagem vai ser prejudicada, tem esse privilégio. Outros canais podem acolher o rapaz, sem problema. A Jovem Pan, por exemplo.

Isso vale para a celeuma Will Smith/Chris Rock. Ambos estão errados. E ambos estão certos. O cara tem o direito de dizer o que quiser, o outro tem o direito de se indignar. Um errou por ser invasivo com uma mulher, o outro, por agredir. Nem tudo no mundo tem uma resposta definitiva, a gente aprende isso com o tempo. O mundo não é binário. Ou melhor, não deveria ser.

-Ah, então você acha que deveria censurar o funk pesado?

De jeito nenhum. Censura, vou repetir sempre, jamais. Mas acho que seria melhor ignorar e deixar morrer de inanição – e melhorar a educação básica. É uma coisa ruim, sem sentido. E acho que sim, deve ser criticado como qualquer outra coisa, não pode ser “coitadinhado” como fazem. Não se pode censurar a crítica, também. Apenas acho que deve haver coerência no que se comenta.

A gente não tem o direito de gostar de uma atitude ou fala e não gostar da outra; temos que ODIAR quem diga qualquer coisa que a gente não goste.

Mas já que estamos sendo dialéticos, vamos também defender o binarismo: nessas eleições PRECISAMOS dele. Temos de um lado um criatura que flerta – ou melhor, acasala – com a ditadura, com o autoritarismo. Do outro, a civilização. QUALQUER candidato que possa vencer deve ser apoiado sem restrições. Dividir a reação, nesse momento, é favorecer o mal. Todos os erros habituais de governos anteriores não devem ser esquecidos, mas são menores se comparados ao que combatemos hoje. Nosso amado líder quer trocar o Estado Democrático de Direito por um estado autocrático de direita.

A vida é complicada, mas às vezes é muito simples.

 

PS: Por conta da antecedência com que escrevo, às vezes acabo perdendo ganchos – que é coisa que não falta nesse Brasil. O Bozo da Corte nos informa que a fome no país não é isso tudo, pois não tem gente pedindo pão na porta da padaria.

Quem fala demais dá bom dia a cavalo. Ou, pior, cloroquina a ema.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Ricardo Dias

Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.

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