Não há patriotismo de ocasião que me faça ver graça, engenho e arte em uma independência que preservou a escravidão, o latifúndio e a monarquia. Não paga a minha cerveja. Costumo, no meu calendário particular, louvar o 23 de abril, dia de saravar Ogum e São Jorge, santo do povo, e também nascimento de Pixinguinha, como data maior da minha pátria. É que distante das margens plácidas, meu santo Pixinguinha se tornou, no fuzuê entre batuques africanos e sopros das europas e outras américas (devidamente temperados com a pimenta daqui), um dos inventores do país em que acredito e pelo qual luto.

Compositor Alfredo da Rocha Viana, o Pixinguinha. Divulgação Banco do Brasil
No Brasil oficial, um português proclamou a independência, um marechal monarquista proclamou a República, oligarquias fizeram uma revolução para derrubar outras oligarquias, um ministro do Estado Novo virou o presidente da redemocratização no final do Estado Novo e José Sarney foi o primeiro presidente civil a falar em nome da democracia, após o ciclo militar que ele mesmo apoiou. Os rearranjos elitistas são constantes na nossa trajetória.
Ao mesmo tempo, nas fendas da propalada História Oficial e de suas efemérides cafonas e caducas, há o Brasil que mora no ponto de boiadeiro das umbandas encantadas: Boiadeiro laça o vento / Na linha do laçador/ Se não tem vento eu invento/ o vento que me laçou. Um Brasil inventor de vida no vazio, que pode ser o do desânimo, mas pode ser também o da criação do sincopado. Um Brasil de discursos não verbalizados, manifestado em corpos que transitaram o tempo todo na desafiadora negação da morte, entre guerrilhas e carnavais.
Há quem tenha ouvido o grito do Ipiranga às margens plácidas. Há quem escute os toques de aguerés, cabulas, muzenzas, barraventos, avamunhas, satós, ijexás, ibins e adarruns. Há quem tenha anunciado o Império do Brasil e aclamado o Príncipe Dom Pedro. Há quem bata tambor para os caboclos baianos do Dois de Julho. Minha turma é a dos últimos.
Independência é coisa que se conquista diariamente, nas ruas, nas rimas, nas escolas, nas artes, mas também na materialidade dos nossos corpos. Como escrevi em O Corpo Encantado das Ruas, “precisamos de corpos libertos do projeto domesticador, normatizador e disciplinador que se inscreve no domínio colonial dos corpos adequados para o consumo e para a morte em vida”. Precisamos de outras vozes, musicadas, atravessadas. E precisamos escutar e aprender com a sabedoria dos que transgrediram o horror em artimanhas de celebrar a vida.
Não esperem que eu louve efemérides oficiais. Sem espadas ao alto, sem o “já raiou a liberdade”, ainda insisto em colocar na água suja da aldeia, todos os dias, meu barquinho imaginado em que repudio os projetos de morte que nos assombram e escrevo apenas, perto do morro da Mangueira e longe das margens do Ipiranga: Independência e vida!
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
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